Alphaville (1965)

A estranha aventura de Lemmy Caution é pensada a partir da fusão de gêneros (filme noir e Sci-Fi) neste ambicioso texto sobre o filme de Jean-Luc Godard.

Críticos:

Olavo Fernandes

Ok, Alpha 60


Partindo da amalgama de dois gêneros distintos, noir e sci-fi, na construção do enredo, Jean-Luc Godard elabora uma narrativa coerente a um determinado prisma particular: A tecnologia como agente desumanizador das relações e sentimentos arcaicos. Em Alphaville, Lemmy Caution encontra uma cidade cujos habitantes são controlados por uma inteligência robótica. Amor, ternura e demais sentimentos são apagados do consciente das pessoas que são quantificações enumeradas como meras programações que alimentam a funcionalidade de um sistema maior, sendo a tecnologia usada como veículo de toda essa alienação.


Quando esse status quo de pseudo-consciência é quebrado, já no terceiro ato do filme, observa-se o colapso total, não só do sistema, mas de todas as suas engrenagens em conjunto. Por isso, após determinados eventos, os habitantes demonstram um comportamento paradoxalmente primitivo, pois, ao mesmo tempo que remete ao selvagerismo instintivo da raça humana, é um mero produto-resultado do colapsar de uma entidade computadorizada conjunta. Assim, o diretor se aprofunda em questões filosóficas, sociais e psicológicas mais complexas de forma inédita em sua filmografia até então.


Esteticamente, Jean-Luc mantém o alicerce de seu estilo, apostando em planos longos e movimentos de câmera ousados. Porém, seu discurso é expandido pelas escolhas visuais tomadas. Por exemplo, o uso dos espelhos em vários enquadramentos para evocar o auto reflexo da temática que se encontra diegética como um mero espelhamento do que se encontra além da quarta parede, dialogando com o que se torna cada vez mais ordinario e inerente na era pós-Alan Turing. Outro recurso de destaque é o uso de negativação da película para convocar uma diferente ótica sobre determinados planos que tem sua palheta integralmente invertida, também como uma forma de realçar o caráter binário do ponto de vista de Alpha 60. A escolha do preto e branco de Godard, mesmo depois de já ter realizado filmes coloridos na carreira, fortalece a atmosfera noir que é alimentada pela fumaça, figurinos e a femme fatale de Anna Karina. Isso sem contar a revelação da verdadeira origem e motivação do protagonista, que evoca um contexto mais detetivesco e investigativo à trama.


Enquanto se retroalimenta diretamento do cinema noir americano, dentro do gênero da ficção científica a cinematografia gélida e futurista estabelece uma identidade visual singular do gênero e serve de alento para várias obras posteriores do mesmo nicho. Os primeiros planos da luz do Alpha 60 piscando, por exemplo, se assemelham muito a forma como Stanley Kubric enquadra claustrofobicamente o olhar de HAL-9000 em 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968).


Alphaville é a guinada inicial do diretor no mundo do cinema auto consciente de sua obra, que transcorre por temáticas sociais e culturalmente relevantes, gerando um discurso sobre determinada temática e ainda quebrando convenções estabelecidas da gramática cinematográfica, o que nunca deixou de ser uma marca autoral do cineasta. Neste filme, são explorados aspectos da filosofia e psicologia humana a partir do progesso tecnológico insurgente, em nenhum filme anterior de sua carreira, Godard explorou temas tão sofisticados e, se observarmos os trabalhos posteriores de sua filmografia, podemos ver uma maior sofisticação de discurso se formando.


É interessante observar que a metamorfose narrativa do cineasta demonstra seus primeiros traços aqui, pois é posteriormente que seus filmes deixam de ser alienados e se tornam mais ricos e complexos em suas entrelinhas, fase que encontra seu auge em filmes como A Chinesa (1967), Vento do Leste (1970) e Tudo Vai Bem (1972)(embora esses tenham uma feição mais política) e perdura até hoje em obras mais recentes como Adeus a Lingaguem (2014) e Imagem e Palavra (2018)(embora esses tenham um caráter mais experimental com a própria linguagem do cinema). É possível estabelecer um paralelo da carreira do diretor com a da banda britânica The Beatles em seus determinados contextos, pois ambos iniciam sua carreira transgredindo, quebrando convenções e estabelecendo novas, emergindo subtamente na cultura pop para depois subverter seu próprio estilo e conceber uma metamorfose a sua obra, que confere um novo caráter na elaboração conceitual, no caso de Godard a desalienação e, no caso da banda, a psicodelia.


Assim como Tudo Vai Bem está para Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band como cume da sofisticação artística, Alphaville está para Rubber Soul, já que ambos demonstram particularidades de uma nova abordagem. O disco possui trejeitos psicodelicos assim como o filme possui traços da fuga da alienação do cineasta, ou seja, ambas obras introduzem elementos mais eruditos na concepção de conceito do produto final.


Porém, Alphaville não é somente relevante estéticamente, literariamente e socialmente, mas também no campo filosófico. Pois, sua concepção de consciência computadorizada se antropofagiza nas reflexões de sartre sobre a consciência humana. O caráter da mente ininteligível dos habitantes da cidade se fagocita diretamente das teorias sartreanas. O filósofo é diretamente citado em A Chinesa (nessa caso, até mais pela militância esquerdista do que pelo debate psico-filosófico) o que indica a consciência de Godard na contrução de seu discurso a partir de alguns pensamentos do filósofo. Assim, Alphavile se prova uma obra completa e distintiva na filmografia de um dos diretores que mais transgrediu cinematográficamente ao longo de sua carreira, sendo não só uma de suas obras mais bem realizadas, como também um marco da trajetória do cineasta.