O filme de David Fincher produzido para a Netflix sobre a polêmica em torno da autoria de Cidadão Kane é analisado por Antonio Cuyabano, Pablo Borges Paz e Olavo Fernandes.
O famoso “era uma vez em Hollywood” é o novo caminho para relatos e anedotas em torno da produção de um filme. Recentemente, no filme de David Fincher, Mank (2020), podemos perceber os bastidores de um grande alvoroço encadeado por uma ficção biográfica de um dos maiores magnatas do continente americano. Além disso, visualiza uma história de achados históricos, que realiza um recorte não apenas do tempo, mas de um pensamento e, ainda assim, ressalta uma narrativa com interpretação inédita dos respectivos sujeitos.
O cinema Estadunidense nos últimos tempos ainda guia seu público para biografias de artistas ou pessoas influentes de seu país. A forma como contam uma história atende a proposta clássica dos três atos, no qual, durante o início do filme exibe um personagem descontraído e de fácil identificação. A medida que a obra avança revela-se um indivíduo falho, apoiado em seus vícios e instigado por uma redenção. Essa atenção com a forma fílmica tem como finalidade propor uma humanização, recurso muito utilizado em roteiros biográficos, que ao preservar a memória de uma pessoa busca reconhecer em seus erros os seus maiores acertos. No entanto, a produção de um filme ligado exclusivamente a vida de um sujeito, resulta em um julgamento precipitado dos acontecimentos que em certos momentos é interessante. Pois, uma nova imagem surge a partir do ícone.
Mank é um personagem que esbanja para fora de si uma filosofia inusitada. Aparentemente comprometida com o tempo presente. Ele apresenta uma onda arcadista de se comportar, um ar bucólico, o famoso aproveite o dia (Carpe Diem) com suas bebedeiras e apostas altas. O protagonista se entrega totalmente ao momento, percebe que a câmera é o holofote de seu gênio artístico. O rapaz é um livro complexo com linhas de um conhecimento imenso. Para focar em seu trabalho, recorre ao ambiente rural, espaço que o afastará de qualquer distração ou vicio. Essa atitude do personagem, além de servir como respiro para os achados históricos da narrativa, aprofunda sua relação com outras personagens que ali se encontram. Novamente vemos um sujeito esperto que de vez em quando arrisca um flerte entre linhas e parágrafos de Cidadão Kane. O caminho que Mank percorre para a construção do argumento é demonstrado na sua relação com o então magnata William Hearst. E como se percebe, observamos juntamente dele toda a indústria cinematográfica ligada não apenas ao magnata, mas também à política vigente da década de 30. O personagem interpretado por Charles Dance se compromete com sua posição e retoma uma ideia semelhante à atuação de Orson Welles na ficção biográfica. A propósito, além de William, Marion Davies é uma indagação, seus olhares e gestos revelam para a narrativa uma personagem presa ou enjaulada dentro daquele zoológico que Hearst possuía. Além disso, Amanda Seyfied se compromete com a insegurança de uma jovem que busca entender a solidão do marido. Tal ponto é muito bem observado por Mank, que o descreve em seu roteiro, o ligando ao famoso “Rosebud”.
Entre pontas de cigarros e ajustes inesperados da película, o filme é longo e é possível perceber um afastamento mesmo que momentâneo em relação a outras obras de Fincher. Idolatrado pela sua direção dinâmica e mecânica, as obras que sucedem a Clube da Luta, carregam um certo amadurecimento. No entanto, esse crescimento de Fincher se dá pela sua intenção em contar histórias próximas de uma realidade palpável, como podemos reparar em A rede social (2010) e Garota exemplar (2014). Essa realidade presente nas entrelinhas e carregada de um pensamento ou modo que incorporamos o personagem é compreendida na sua ação e reação. Fincher tem espasmos de rebeldia com os filmes dos anos 30, a presença constante de uma câmera alta e até um travelling maravilhoso com um diálogo estonteante. Esses aspectos animam a história que, com o tempo, se deteriora com a progressão do clímax. Fincher é um rapaz astuto e novamente comprometido em entregar a sua visão de todo esse alvoroço.
Quando pensamos ou falamos Cidadão Kane ligamos de imediato uma pessoa – Orson Welles – o gênio do rádio que realizou o feito de assustar pessoas com uma invasão alienigena em Nova York. Assim sendo, em Mank esperava-se um aprofundamento da história de um dos maiores cineastas norte-americanos. Pois então, durante o filme, era possível inferir que Orson aparecia com a intenção de revolucionar o cinema. Ainda assim, ao lado de Mankiewicz. No entanto, o que se revela é um sujeito afastado das reais pretensões das quais a história nos conta, e além disso, um rapaz egoísta e temperamental. O objetivo do filme é contar os relatos de Mank em um turbilhão de acontecimentos em torno dos bastidores da década após a grande depressão. Entretanto, o realizador exagera em sua intepretação precipitada da possível relação de Mank com Orson Welles. Em caráter pessoal, pois, a função dramática exposta no filme não possui função alguma a não ser reproduzir uma imagem distante de um personagem.
Mank é uma solução, um debate ou uma eterna discussão? O filme se aperfeiçoa com sua fotografia simpática e sua aproximação com os filmes de uma Hollywood que domina o mercado exterior, invadindo salas de cinema com seus filmes clássicos. Fincher adulto e com suas novas ideias, busca além de incrementar sua visão, se delimitar a um mesquinho papel de propor mecanismos superficiais para personagens complexos.