Diário de uma camareira (1964)

O longa-metragem de Luis Buñuel retrata a experiência da camareira Celestine com a família Monteil. Primeira rodada de textos sobre a última safra do diretor.

Críticos:

Edeizi Monteiro Metello
Pablo Paz
Olavo Fernandes
Antonio Celso

O Diário de uma camareira (1964, Luis Buñuel) é um filme que retrata acontecimentos na vida de Celestine (Jeanne Moreau), uma camareira que vai trabalhar na casa da família Monteil, uma família rica com membros excêntricos.

O longa-metragem possui características do realismo, com momentos de muito silêncio e diálogos de personagens sem qualquer música ao fundo. Por isso, a narrativa pode aparentar ser lenta, pois na primeira metade do filme há apenas uma preocupação de expor os personagens, mas mantendo certa distância, vista nos planos que evitam se aproximar além do plano médio.

Apesar do nome do filme, não há nenhum diário físico mostrado na frente da câmera, e a personagem não aparece escrevendo. A estrutura do filme também não possui indicação de dias específicos, apenas uma estrutura que mostra a camareira recebendo ordens, cumprindo tarefas e conversando com os membros da família e vizinhos, o que demonstra a passagem do tempo de forma indireta.

Vale mencionar a cena do assassinato da Claire, pois foi utilizada uma metáfora para explicitar a ação de Joseph, sem mostrar exatamente o que aconteceu. O porco selvagem que aparentou correr atrás do coelho indefeso foi apropriado e demonstrou certa sensibilidade dos criadores em tratar um tema tão lamentável, apesar de que o plano seguinte das pernas da menina coberta com lesmas não ser nada agradável. No entanto, é possível que o desagrado seja o efeito desejado, pois atacar uma criança, em qualquer circunstância, é abominável.

Apesar do foco ser na personagem Celestine, há uma preferência por manter a distância, mostrando-a nos ambientes, como na cena inicial na qual ela chega na estação de trem, ou na cena seguinte na qual ela está na carroça, a caminho da casa em que irá trabalhar. A ausência de primeiro plano nessas cenas dá a entender que a narrativa irá tratar de algo muito maior que essa personagem ou os outros que são ou serão introduzidos.

A personagem Celestine passa por situações desconfortáveis enquanto camareira da família Monteil. É constantemente assediada pelo marido da patroa e pelo pai da Madame Monteil. Mas a personagem não aparenta estar fragilizada por isso. Pelo contrário, ela demonstra aceitar alguns avanços e situações pela sua própria vontade, e quando um desses personagens ultrapassa seus limites, ela não tem medo ou vergonha de rejeitá-lo.

É possível que essa personagem aja desse jeito devido a um reconhecimento da posição difícil em que ela se encontra. Ela está como empregada da família, esta que pode dispensá-la a qualquer momento, por qualquer motivo. Por isso, a personagem provavelmente buscou agir dessa forma, ora permitindo avanços, ora não, porque isso a mantém no emprego, sem maiores desentendimentos ou desconfortos.

Outra possibilidade é que o filme tenta mostrar que a personagem é misteriosa, próxima ao arquétipo da femme fatale. Mas sem o objetivo de levar os seus amantes ao infortúnio, e sem buscar ativamente seduzir os homens à sua volta. Pelo contrário, eles que são atraídos por ela devido ao caráter pervertido dos mesmos, ou seja, apenas mais um traço de suas personalidades: quanto ao marido da patroa, essa característica se adiciona ao fato de ele caçar animais, e quanto ao personagem Joseph, apenas mais um detalhe no fato de ele ser fascista.

No filme, a personagem age como uma heroína, mas a narrativa logo demonstra que não lhe cabe esse papel ao mostrar que seus planos de capturar o assassino falham. Não por incompetência, mas devido ao sistema na qual ela está inserida, que beneficia aqueles que são nacionalistas e cristãos, não importando se no meio da noite agem como assassinos, já que ninguém está à sua volta para provar a sua hipocrisia.

Por isso, o longa-metragem age como um exercício de reflexão. Ao mostrar ao espectador a personagem Celestine, o filme explora o lugar daqueles que não se conformam com a ordem vigente. É possível agir individualmente, mas isso é suficiente quando o problema é estrutural?

Um sistema fascista permite que pessoas com algum poder utilizem de seus privilégios para encobrir seus atos, ao mesmo tempo que criam um inimigo invisível e estereotipado. No filme, esse inimigo são os “estrangeiros”. Ao mesmo tempo que esse sistema não endereça as adversidades da administração pública, cria um obstáculo imaginário e uma resposta a esse obstáculo inefetiva e violenta. Todos perdem com isso, pois as dificuldades iniciais continuam, novos crimes são encobertos e aqueles que não estão no poder podem, a qualquer momento, ser uma nova vítima.

É por isso que o final do filme pode ser entendido como um alerta, mas um alerta deprimente. Ao mesmo tempo que mostra os horrores de um sistema fascista, apenas levanta mais questões ao mostrar que o assassino não apenas deixou de ser punido, como conseguiu se juntar e dar suporte ao movimento nacionalista que ele tanto aprecia. É compreensível que Celestine tenha desistido e se juntado a eles ao se casar com um militar, pois sozinha não conseguiria resolver essa situação. É deprimente, pois não há qualquer sensação de esperança ou justiça ao ver os fascistas marchando e gritando palavras de ordem na cena final do filme, o que indica que se nada for feito, são eles que assumirão o controle.