A bela da tarde (1967)

Discentes analisam a obra de Luis Buñuel, que explora a vida dupla de Séverine, uma jovem que não sente prazer em seu casamento.

Críticos:

Olavo Fernandes
Edeizi Monteiro Metello
Pablo Paz
Igor Matos
Antonio Celso

A Bela da Tarde

 

Apesar de um determinado convencionalismo narrativo em relação a própria filmografia de Luís Buñuel, ironicamente, a primeira cena de A Bela da Tarde possui feição literalmente onírica e logo estabelece traços relativos à personalidade de Severine e à natureza de seu relacionamento com Pierre. Isso a partir de seu próprio prisma, que ressalta receio e desconforto para com a relação e a escassez de intimidade entre ambos. Isso é ainda mais evidenciado na cena seguinte, onde o casal dorme em camas separadas, sem acalento entre eles e filmados com determinada distância. Assim, se ressalta uma certa objetificação da personagem interpretada por Catherine Deneuve, uma vez que é inferido um pressentimento de esposa-troféu ao olhar masculino devido à falta de um laço afetuoso entre os dois em uma relação que deveria ser um relacionamento amoroso.

 

O convencionalismo aqui não possui tom pejorativo, porém sobrepuja o conteúdo sobre a forma de maneira oposta a autoria de Buñel caso se observe suas obras anteriores. A Bela da Tarde adota verossimilhança durante maior parte de sua duração e, ainda assim, possui momentos específicos que escalam novamente ao fantástico, repercutindo os conflitos e relações implícitas entre os personagens. Uma demonstração é a passagem onde Henri e Pierre arremessam lama em Severine imobilizada. Tal verossimilhança aqui é fundamental para trabalhar outro retrato burguês cínico de Buñuel a partir da obra de Joseph Kessel, provendo a persona da protagonista de um caráter supostamente inocente e completamente alienígena ao meio que está inserida.

 

Ainda nessa efígie caricata, cada personagem carrega uma caricatura distinta. Hyppolite é o burguês pseudo-elegante que esconde por trás da máscara sofisticada uma segunda face perniciosa e promíscua; Marcel é o dândi; Monsieur Adolphe representa a burguesia entorpecida - “Não consigo dormir sem um pouco disso todos os dias”, diz o próprio compartilhando champanhe com uma das cortesãs em seu colo na primeira linha de diálogo da sequência em que assedia Severine. Adolphe não encontra limites para atingir a saciedade de seus desejos, característica que também é comum aos citados anteriormente. A cena seguinte, na qual Severine é deflorada por Adolphe, é composta por apenas dois extensos planos, atiçando o espectador como testemunha em um olhar contínuo. Dessa forma, acaba deixando o ato mais truculento do que se fragmentasse o momento e, dessa forma, empregando mais empatia em relação a protagonista em detrimento de sua aparente carência de expressão e personalidade. O sexo é forçado, Severine se resume cada vez mais à “Bela da Tarde”. A objetificação é latente tal qual o estopim da suposta perda de sua inocência. Uma estética similar é adotada nos planos do trecho onde Hyppolite tem um diálogo um tanto quanto sugestivo com Severine, diálogo este que se inicia elegante e logo escala para uma reificação vulgar. Mise-en-scène e texto são construídos de maneira complementar. Como quando há toda uma sugestão na conversação que Severine parece ou simula não compreender até que o assediador seja claro e direto, quebrando toda a primeira feição de decoro que o mesmo esbanjava. Enquanto isso, a câmera flutua em longos takes buscando englobar pequenas expressões, tanto de rosto, como pequenos gestos, como as mãos da jovem, que demonstram insegurança e receio enquanto tenta manter-se alinhada. Tal ingenuidade é cenograficamente traduzida no copo de leite que ela consome enquanto o evita ou responde-o secamente.

 

Logo após a cena da perda da virgindade, Severine se lava, sugerindo consciência pesada. Buñuel a filma nua, mas de forma opaca, através do vidro do banheiro. Dessa forma, ele evita o male gaze a partir da câmera, rechaçando retificar sua protagonista como os personagens a veem. Tal recurso demonstra uma completa coerência e domínio de seu discurso cinematográfico. Além disso, dialoga com o crescente desenvolvimento íntimo da personalidade de Severine, aderindo camadas ao seu caráter e evidenciando uma disparidade para com o vislumbre dos demais que a tratam com demasiada imperatividade. Sempre a enxergando como uma folha rasa sem personalidade. Tudo isso graças a objetificação que empregam a ela. Dentro do enredo, essa é apenas sua primeira camada, uma vez que ela possui, além de seus conflitos internos e a relação muito singular com a própria sexualidade, um caráter psicológico profundo e uma sapiência despercebida pelos demais na hora de contornar situações ao seu interesse. Seja através da ação ou da dissimulação. Assim como a burguesia pauta sua relação com Severine através do interesse carnal, ela também o faz buscando um valor do campo material, almejando orbitar aqueles ambientes opulentos em troca de servi-los. É uma permuta de interesses onde sua candura tem função pivotal, uma vez que eles objetificam a própria inocência dela. Inocência essa que pode existir de fato como ser fruto de mera dissimulação, tanto para valorizar-se como acompanhante - afinal, essa característica é sempre ressaltada por Anaïs e apreciada pelos clientes. Ou também para postergar as relações íntimas com seu parceiro. Toda sagacidade da personagem põe em xeque a real natureza de sua inocência, agindo de forma contrastante à sua candura e concebendo uma personagem dúbia e psicologicamente complexa. Personagem que pode ter essa característica tanto como componente de seu arsenal, quanto resultado de uma lembrança amarga de infância.

 

Porém, a reificação de Severine não parte somente de um olhar masculino, mas sim de toda a classe burguesa, destacando também a ótica de Anaïs. Esta, além de logo enxergar o potencial venéreo da protagonista, explorá-la dessa maneira e atribuir a ela a alcunha de “Bela da Tarde”, ainda possui uma espécie de olho mágico para observar o cômodo onde ocorrem os coitos. Um quase literal gaze, mas, dessa vez, sem o male. Nesse prisma, Severine é nada mais que um estranho objeto do desejo e, mesmo assim, Buñuel não a explora visualmente neste viés. Não há nu frontal explícito aqui, por exemplo. Afinal, o cineasta sempre cobre seu corpo de maneira sutil nos momentos em que ela está nua, deixando espaço apenas para o erotismo meramente sugestivo. Ainda discorrendo sobre o olhar, também é interessante observar que talvez o único personagem que não possa objetificá-la, o serviçal da mansão de Hyppolite, usa óculos escuros sempre que está presente em cena.

 

Se O diário de uma camareira (Luís Buñuel, 1964), estava próximo de A regra do jogo (Jean Renoir, 1939) no retrato de sua burguesia, A bela da tarde se assemelha muito ao mundo de aparências de uma obra posterior, O demônio neon (Nicolas Winding Refn, 2016). Nesta, o realizador dinamarquês se apropria do universo de beleza frívola a partir do prisma de outra personagem dubiamente cândida e ambiciosa, onde o senso de alienismo é latente. Inclusive, há arquétipos de personagens extremamente semelhantes: O namorado dócil e inocente, as “concorrentes” maldosas, o patronato leviano e imperativo, entre outros. Transporte o contexto do bordel para uma agência de modelos, que essencialmente nem chega a ser assim tão díspar, e se torna fácil detectar uma semelhança discriminável.

 

Existe algo que une a primeira e a última cena para além do caráter onírico e interpretativo, pois ambas possuem um desenho de som peculiar, mesclando sinos e ruídos de animais em desarmonia, ambas são fundamentais para o desenvolvimento psicológico de Severine. Afinal, é uma personagem de nuances, contrapontos. A sapiência contrasta a inocência tal qual seu desejo, desejo esse que não demonstra caráter sexual, mas sim social e materialista. “Um dia hei de pagar por tudo que fiz no inferno, mas não consigo viver sem isso” diz a própria dentro de um ostensivo quarto do bordel ao ser confrontada por Henri pelo seu maior contraste, sua vida dupla, fruto de sua díade persona, a mesma que aparta Severine e a “Bela da Tarde”, o instrumento da sacies de seu anelo, algoz de sua inocência.