Neste ousado e polêmico filme composto por esquetes, Buñuel narra o caminho de dois andarilhos em direção à Santiago de Compostela, atravessando diversos dogmas cristãos.
A via láctea (1969, Luis Buñuel) é um longa-metragem que acompanha o trajeto a pé de dois andarilhos, saindo da França e indo em direção à Santiago de Compostela, encontrando no caminho representantes de dogmas cristãos e heresias.
O filme começa com um plano que revela um mapa com traços medievais, partindo de Paris, na França, e parando em Santiago, na Espanha. A narração que acompanha esta cena, explicando as origens do Caminho de Santiago, e os planos seguintes, que mostram a cidade com a Catedral ao fundo, trazem um aspecto documental ao filme. Isso demonstra um esforço para romper com o lado ficcional do longa, além de preparar o espectador para algo além do que está sendo mostrado ou falado.
Por isso, a história sobre os andarilhos pode ser vista mais como uma grande alegoria do que ser compreendida literalmente. Ambos os personagens aparentam estar alheios a esse aspecto da obra, visto quando ficam confusos com o primeiro personagem que encontram em seu caminho, que fala sobre encontrar uma prostituta em Santiago e dar nomes incomuns (“você não é meu povo” e “chega de misericórdia”) aos filhos que tiverem com ela.
A obra possui aspectos em comum com o gênero literário ensaio, pois traz argumentos e exemplos ao longo do texto, dados através de diálogos dos personagens, pouco casuais e extremamente reflexivos, e situações utilizadas como exemplo, em cenas que utilizam a montagem paralela, revelando a crítica do autor sobre o assunto. Isso pode ser visto em dois aspectos: a visível confusão dos personagens no questionamento dos dogmas e o enquadramento, que traz respeito ao orador que transmite o ensinamento, posicionando-o no centro do quadro, se aproximando com um zoom de baixo para cima, e se afastando quando os outros personagens opinam, como na primeira cena que os andarilhos encontram o primeiro personagem. Dessa forma, quem fala parece removido da realidade, do contexto que o rodeia, por poucos segundos, ainda que pareça ter alguma autoridade para falar, com a impressão do ângulo respeitável que teve segundos antes. Isso é reforçado em outra cena, na qual um padre fala sobre a hóstia e algum tempo depois é levado de volta a um hospital psiquiátrico, o que evidencia ainda um tom humorístico da obra, sendo “removido da realidade” uma característica literal desse personagem, pois ainda não está pronto para a convivência em sociedade.
A via láctea exemplifica vários dogmas, sem ter o objetivo de doutrinar ou se aprofundar demais. Como os andarilhos, o filme apenas passeia pelos seus temas e contradições. Porém, a própria obra prova que tal aprofundamento não é necessário, pois seus diálogos e cenas já cumprem com facilidade o exercício de reflexão proposto.
No entanto, devido à quantidade de informação presente, esse exercício pode ser exaustivo e os diálogos difíceis de acompanhar, principalmente àqueles não familiares com o cristianismo. É possível que isso aconteça devido à preocupação do autor em reforçar seu ponto com o máximo de evidências para que sua proposta não fique rasa.
Nessa proposta, é nítido o conflito entre passado e presente. A cena inicial revela esse conflito, mostrando o mapa semelhante aos mapas medievais, pouco parecido com os mapas mais recentes, normalmente medidos para que sejam o mais próximo da realidade possível. Se o filme se passasse naquele período, o mapa não estaria tão distante, mas como as cenas seguintes apresentam estradas e veículos motorizados, destaca-se o conflito. Esse conflito permeia toda a obra, com os dogmas sendo defendidos com firmeza e a realidade do mundo contemporâneo, ou outros dogmas, confrontando-os diretamente.
Além do conflito entre passado e presente, existe a tensão entre ficção e não ficção. Ao iniciar o filme com a cena já mencionada, o aspecto de não ficção é ressaltado, sendo que ele é disputado quando os andarilhos são introduzidos. O filme segue fazendo essas alternâncias, ora exemplificando as passagens bíblicas com cenas, ora retomando os andarilhos. Nenhum plano introduzido é à toa, apesar da estranheza inicial que o contraste possa dar, como na cena das meninas estudantes enunciando dogmas católicos, que são cortadas por planos de pessoas marchando com armas de fogo nas mãos. Em um primeiro momento há um choque inicial. E pode-se entender que há algum tipo de violência na trajetória das meninas que tiveram que memorizar aquelas frases específicas. Em um segundo momento, quando os personagens marchando aparecem apontando as armas para o Papa, entende-se que o trajeto daquele grupo tem a ver com aquela ação. Esse pensamento sofre uma reviravolta, pois nos planos seguintes um dos personagens que estão assistindo o discurso das meninas comenta sobre ouvir algo, no qual Jean (Laurent Terzieff) responde que estava imaginando que fuzilavam o Papa. Isso é inesperado, pois normalmente não se espera que um personagem escute o pensamento do outro, o que abre ainda mais espaço para interpretações e demonstra o aspecto alegórico da narrativa.
O longa-metragem traz um tema recorrente de Buñuel, que é a crítica às instituições religiosas, juntamente com seu estilo surrealista. Diferentemente de O diário de uma camareira (1964) e A bela da tarde (1967), a narrativa não gira em torno de uma bela mulher e o erotismo gerado pela sua existência. Porém, assim como essas obras, o filme vai além dos personagens e da narrativa, revelando algo muito mais profundo do que está sendo mostrado.