O discreto charme da burguesia (1972)

Buñuel aprofunda suas críticas sobre a burguesia neste longa-metragem que apresenta um grupo de personagens que está tentando marcar um jantar que se vê frustrado por diversos motivos.

Críticos:

Edeizi Monteiro Metello
Pablo Paz
Antonio Celso
Igor Matos

O discreto charme da burguesia (1972, Luis Buñuel) é um longa-metragem que explora a vida de múltiplos personagens, todos da burguesia, de uma forma não linear e onírica.

Assim como tantos outros filmes dessa fase do diretor, este começa em uma estrada. O que será exibido é uma viagem. Tanto física, no mundo narrativo, com os personagens andando a pé ou de carro, quanto metafórica, uma viagem através do estranho mundo da burguesia. Também se aplica o sentido denotativo da palavra, pois a estranha estrutura permeada por sonhos lembra uma realidade alterada, de alucinógenos.

A estrada introduzida na primeira cena não significa que será reta ou que vai levar a algum lugar, já que uma das características das obras de Buñuel ao longo de sua filmografia é a ausência de linearidade narrativa e a experimentação. Múltiplas ideias são jogadas na tela de forma livre, sendo o espectador livre para entender o que quiser a qualquer momento.

Um desafio desse filme é se importar com o que ocorre a algum personagem. É provável que isso seja intencional, pois eles são tão superficiais e vazios que fica difícil ter empatia. Além disso, essa é mais uma obra do diretor que explora um sistema, e não a vida específica de um personagem, então o que acontece a eles tem mais sentido simbólico do que narrativo. Violência, como quando eles são atacados na última cena do jantar em que estão juntos, pode significar uma sublimação de agressividade, mais do que um ato que ocorreu em si. Ao passar essa cena, vê-se que foi, na verdade, o sonho de Rafael (Fernando Rey), o que reforça ainda mais a sublimação da agressividade, agora não mais representando a agressividade do grupo, mas a de seu sonhador.

Outro desafio é continuar assistindo boa parte do longa sem sentir um extremo tédio. Os personagens estão na maior parte do tempo falando de trivialidades, como bebidas e comida, tornando-se difícil continuar olhando-os e não desejar que algo diferente aconteça logo.

Ao mesmo tempo que é entediante acompanhar os inúmeros jantares interrompidos dos personagens, o filme não abandona seu propósito. Longe de ser vazio como os personagens, os momentos de lembrança de sonhos destes podem surpreender, e até mesmo chocar.

Nas infinitas tentativas de agrupar e organizar uma refeição em grupo, quando o desfecho é revelado ser o sonho de um personagem, fica a dúvida se os acontecimentos oníricos revelam algo sobre a narrativa, ou se só foram mais um devaneio sem sentido. Devido ao absurdo dos sonhos, pode-se pensar que seja esse o caso, e por isso o sonho está ocupando espaço gratuitamente na narrativa, deixando de ter muito significado. Se significa algo, entra em uma área cinza perigosa, na qual os personagens misteriosamente têm poderes psíquicos, e esse não é um filme de fantasia.

Porém, essa área cinza é calmamente adentrada sem desviar a história em direção a outro gênero. Os medos e preocupações dos personagens são expostos nos sonhos de forma bem óbvia, como o delegado que vê os prisioneiros ricos sendo soltos pelo policial que trabalha junto a ele. Logo em seguida ele os solta, como se o sonho também estivesse avisando de algo que inevitavelmente iria acontecer. Como a narrativa não é convencional, se cortando o tempo todo por símbolos, isso se torna aceitável, já que toda a obra pode ser vista como uma alegoria.

Em uma cena, enquanto se preparam para jantar, há um defunto por trás das cortinas. Evita-se o contato, evita-se a menção, é impróprio; mas também age como um lembrete da brevidade da vida. Não cabe esse lembrete na rotina superficial, nos relacionamentos de fachada, nas traições, no tráfico de drogas, nos subornos e longos discursos em defesa do indefensável. Estes últimos não são mais que barulhos, como bem coloca a camada sonora do filme quando o ministro justifica ao delegado a soltura dos ricos, e é ouvida uma grave buzina. Assim como o som está fora de lugar, o que diz o personagem está também fora de lugar. As palavras se tornam inúteis, são agora apenas formalidades construídas para separar aqueles que tem mais recursos dos outros, mantendo-os no poder.

Conforme a obra vai se desenrolando, fica cada vez mais estranho observar essa peculiar burguesia, que se esconde atrás de regras de etiqueta, objetos de valor e armas de fogo, como Rafael, que se esconde debaixo da mesa no seu sonho. Há algum traço de humanidade, ou foram tão sugados por seu próprio mundo que são apenas cascos vazios do projeto de homens que foram um dia?

Eis que, sim, ainda há alguma humanidade. Não no sentido de benevolência, pois não se demoram em ser hostis com aqueles que não fazem parte do seu seleto grupo, como o rico traficante de drogas que atira na direção da mulher que está apenas tentando vender seus cachorrinhos de corda na calçada da rua. Mas sim, no sentido de ainda haver algo que os fazem ser grosseiramente humanos. Nem as mais requintadas aulas de etiqueta poderiam retirá-los dessa condição. Nem os mais caros martinis conseguiriam afogar sua característica mais primitiva.

É grosseiramente humano o hedonismo. Enquanto os amigos se reúnem na sala de jantar, aguardando os anfitriões, o casal foge pela janela para namorar no meio do mato, eufemisticamente falando. Não há formalidades que contenham o impulso. Dá repulsa, não o ato em si, mas se ver refletido naqueles cascos vazios. A pessoa que assiste também é humana.

Seria esse o discreto charme da burguesia? Não as roupas caras, as bebidas, as regras de etiqueta, a transgressão; mas sim, o que ainda lhes resta de humano. A ambição, a ganância, a pretensão, enfim, toda e qualquer tipo de característica que pode ser encontrada em qualquer outro homem. Ou então, tentar esconder, em meio a artigos de luxo e armas de fogo, a sua própria mortalidade. Toda essa pompa, essa máscara, acaba se tornando chacota, e os que estão na mesa de jantar são os palhaços, como na cena do palco, que abre as cortinas e um público assiste aqueles que estão atuando à frente deles. É um exercício mental a ser feito: fosse dada a oportunidade às pessoas fora dessa casta, como dá Buñuel, de observar esse grupo em um cenário não ficcional, a grande falsidade que é a burguesia seria exposta da mesma maneira.