Neste filme Buñuel segue múltiplos personagens em sequências surreais, rendendo uma criativa rodada de críticas escritas por cinco discentes.
Liberdade: conjecturas em uma realidade onírica
O filme O fantasma da liberdade (1974, Luis Buñuel) explora múltiplos arcos narrativos, com personagens da cena anterior que levam à próxima, em ambientes e contextos diferentes, com elementos surreais adicionados à narrativa.
O longa é, possivelmente, um dos poucos filmes lineares do diretor. Ainda que contenha elementos absurdos, como o homem que sonha na cama com sua mulher, recebe uma carta durante esse suposto sonho, e mostra essa carta ao médico que visita posteriormente, nenhum desses elementos quebra a linearidade da narrativa.
O recurso de utilizar um personagem para passar o espectador para a próxima cena é interessante, pois dá uma sensação de estabilidade do universo narrativo, ainda que os elementos absurdos quebrem expectativas. Como esses elementos são tratados com naturalidade pelos personagens, estes não se tornam muito dissonantes e criam uma realidade alternativa no qual o absurdo é o padrão.
O fato de os personagens tornarem o improvável corriqueiro faz as cenas se tornarem cômicas. Isso já aconteceu em A via láctea (1969), do mesmo diretor, que também utiliza o mesmo recurso de fazer o padrão ser o absurdo. Lá, a sátira é utilizada para apontar as incongruências no funcionamento do cristianismo. Aqui, Buñuel também comenta brevemente a ordem da religião católica, mas dando espaço às suas usuais críticas à burguesia e à falta de compostura de homens mediante uma mulher atraente.
Novamente, os planos são médios a gerais, dando um distanciamento dos personagens e colocando-os em uma posição de caso a ser observado. O uso de planos próximos é esporádico e quando utilizado gera desconforto, o que pode ser intencional, como na cena do sobrinho com sua tia. O primeiro plano na cena ressalta o descontrole do personagem e dá a sensação de que se está perto demais, gerando nojo. O tema de incesto gera esse sentimento, então o uso do primeiro plano nesta cena é coerente.
Esse filme pode ser compreendido como se fosse um grande sonho. Os sonhos normalizam aquilo que é incoerente, e isso justifica o comportamento dos personagens aqui. Um exemplo disso é a busca pela menina que desapareceu da escola, mas está na frente dos pais. Mesmo estando lá, eles vão até a polícia para encontrá-la. Em nenhum momento algum personagem aponta que a menina já está lá e que essa busca é desnecessária. É possível, também, que este momento seja um comentário do diretor sobre recursos que supostamente são para funcionar a favor da sociedade, como a polícia, e são utilizados para tarefas sem sentido a favor dos mais ricos, demonstrando quem realmente a polícia está protegendo.
Outro elemento que causa distanciamento dos personagens em relação ao espectador é o fato de boa parte deles não ter um nome. Sem um nome, o personagem se torna mais um estranho na multidão, o que tira o foco do espectador nesse fator específico e o faz conduzir seu olhar a outros elementos. Dessa forma, a narrativa é carregada de uma cena a outra por um personagem que, muitas vezes, tem um papel muito breve, é protagonista em um trecho e logo abandona esse posto para ficar no fundo dos acontecimentos. Além disso, ele pode desaparecer sem mais delongas, dando espaço ao próximo, o qual a câmera acompanha.
A sensação é de que esse filme poderia ser múltiplos filmes, caso esse desenvolvimento fosse dado a qualquer um dos arcos narrativos ou personagens. No entanto, também faz parte do estilo do diretor, vide os trabalhos anteriores, essa escolha de falar sobre múltiplos personagens no mesmo universo.
Assim como nas obras pregressas, há uma recusa do diretor em trabalhar com música na trilha sonora, a menos que seja diegética. O que é ouvido é, muitas vezes, só a voz dos atores. Até mesmo quando uma música quase poderia ser não diegética, como na cena do bar, na qual ela não aparenta vir de lugar algum (como uma banda ou caixa de som) ela é desligada. Isso indica, em seguida, que ela é diegética, mas que a narrativa ou os criadores não querem ser incomodados pela existência de uma música na trilha sonora que não seja diegética. Também revela um aspecto irônico da obra, o qual o autor não quis deixar de lembrar o espectador que se trata de um filme, e não uma experiência imersiva.
Qual seria, então, o fantasma da liberdade? Se há fantasma, significa que algo morreu. O que restou são sobras, cascos vazios daquilo que um dia já foi. Esses cascos perpassam a existência de todos os personagens, transitando entre eles livremente como um desencarnado, sem limites físicos que o prenda. Por isso a ausência de preocupação em acompanhar a trajetória de um personagem, ou a solução de um mistério. O personagem principal é o fantasma, aquilo que não pode ser visto, mas que a câmera tenta, obstinadamente, mostrar. Cabe ao espectador fazer a conexão entre esses elementos e encontrar o fantasma por si mesmo.
Outra interpretação possível é que fantasma é aquilo que assombra. A liberdade existe, mas seu conceito pode perturbar. Todos são totalmente livres, fazendo o que quiserem, por mais absurdo que seja, ou são presos a alguma coisa, logo, não existindo a verdadeira liberdade?
Nos sonhos, é permitido ser totalmente livre. Nenhuma regra se aplica. É admissível buscar a filha perdida que está bem à sua frente, ver animais selvagens entrando em seu quarto, jantar no banheiro e usar o banheiro para jantar. Por isso, é possível que o filme faça um exercício mental do que seria essa liberdade total. Ela seria tão poderosa e avassaladora que o inconsciente das pessoas poderia tomar a frente e distorcer a própria realidade, normalizando aquilo que seria incabível, como regimes autoritários. De repente, aqueles que estão inseridos nesses regimes e acreditam que tudo está funcionando como deveria não parecem tão insanos, pois dentro da realidade quase onírica que estão vivendo, o absurdo é rotina.