Mathieu retoma os acontecimentos entre ele e Conchita, expondo uma relação conturbada e complexa em torno do desejo entre um homem e sua(s) mulher(es).
Desejo: os repuxos da atração
Esse obscuro objeto do desejo (1977, Luis Buñuel) é um filme no qual Mathieu (Fernando Rey) conta a passageiros em um trem o que houve entre ele e a mulher à qual joga água no início da história.
O longa retoma elementos do primeiro filme da fase francesa do diretor, O diário de uma camareira (1964). Novamente, se tem uma camareira em papel de destaque, e ela é sedutora, perigosa e obstinada. A diferença está no fato de que, dessa vez, é o homem que foi seduzido quem conta a história.
Pelo fato de ser o homem contando a história, é possível que a personagem em si não seja tão maquiavélica quanto ele diz ser. Porém, para fins de análise, será considerado o que Mathieu conta aos passageiros como verdadeiro.
Antes de abordar os personagens, vale destacar a estrutura do filme. Este é, em sua grande parte, linear, ainda que seja um personagem relembrando acontecimentos, pois essa estrutura de contar a história segue uma sequência lógica. No entanto, como se trata de Buñuel, a história contada tem alguns elementos absurdos. Dessa vez, estes são poucos e sutis, só realmente vistos quando se presta atenção, e a sua usual crítica às instituições também está subentendida, pois agora o foco são os personagens envolvidos.
Um dos elementos absurdos da história é o saco que Mathieu carrega, sem explicação. Às vezes, ele é visto carregando esse saco na presença de Conchita (Caroline Bouquet/Ángela Molina). Às vezes, ele só existe. A primeira vez que esse saco ganha destaque é em uma conversa entre Mathieu e Conchita, na qual ele oferece uma casa de campo à jovem para que eles possam passar a noite juntos. Quando saem do local, andando em direção ao horizonte, a câmera não os acompanha, mas vira e mira um homem carregando um saco muito parecido ao que Mathieu carrega depois.
Esse saco possivelmente representa o fardo que Mathieu passará a carregar por conta de ter se apaixonado por Conchita. Ela não o deixa fazer o que quer, e por isso ele se tornará muito infeliz e reprimido. No entanto, assim como insiste em carregar a relação adiante, ele insistirá em carregar o saco. E não é nenhum saco, é um saco grande, cheio, pesado.
Outra interpretação possível para esse saco é que ele representa tudo o que Mathieu já carregava em sua vida, mas que ganhou um peso a mais com a existência de Conchita. É provável que Mathieu já se encontrasse frustrado antes de conhecer a mulher, pois ele já estava velho e, em determinado momento, diz que sua esposa já tinha falecido. Como ele afirma a seu amigo que não gosta de se envolver com mulheres sem se apaixonar, isso implica em mais frustração, pois ele expressa ser um personagem que necessita de companhia, também visto em sua vontade de casar-se com Conchita. Se ele não teve essa companhia por todo o tempo desconhecido entre a morte de sua esposa e o aparecimento da jovem, é possível que ele já estivesse infeliz há algum tempo.
Conchita representa dualidades, visto também na escolha de duas atrizes para interpretar a mesma mulher. Nela, está a colisão de castidade e luxúria, aceitação e negação, inocência e malícia, pobreza e riqueza. É a união dos confrontos, pois a personagem jamais fica em um lado só por muito tempo. Ela não tem medo nem vergonha de ser um poço de contradições e sempre usa o lado que mais lhe favorece no momento a seu favor.
Conchita é castidade quando está na frente da mãe, quando confessa a Mathieu ser uma mozita. Ela é luxúria quando cede aos avanços do homem, mas sem jamais deixar de estar no controle, pois ela é quem decide até onde ele pode ir.
Conchita é aceitação quando diz sim à Mathieu, quando concorda com seus planos; e é negação quando não quer mais, quando prefere outro quarto, quando muda de ideia e coloca uma roupa de baixo com laços impossíveis de desfazer.
Conchita é inocência quando afirma nunca ter tido um namorado, quando seus olhos se abrem e sua sobrancelha abaixa, submissamente, dizendo a Mathieu para ter paciência. Ela é malícia quando consegue a casa que quer habitar e joga na cara do homem que esteve com outro esse tempo todo.
Conchita é pobreza quando mora com a mãe, nos subúrbios, quando tem que procurar emprego para sobreviver. Conchita é riqueza quando Mathieu lhe oferece presentes, dinheiro, abrigo.
Em todos os casos, Conchita está sempre decidindo, quando bem entende, onde estar e como estar. Mesmo quando Mathieu inicialmente afirma que ela não era uma mulher que estaria atrás de seu dinheiro, aos poucos, as ações de Conchita contadas por ele passam a dizer o contrário.
Outra interpretação possível para o comportamento da personagem é que ela sente algum tipo de prazer ao ver Mathieu sofrer em suas mãos, como um clássico estereótipo de vilã, e não necessariamente está interessada no dinheiro dele. Ela não tem nenhuma outra distração interessante em sua vida, pois sua casa é monótona, sua mãe é previsível e seus empregos também, salvo a dança, único trabalho que lhe é passional. Através da dança, ela é capaz de sentir emoções intensas, e é possível que seja isso que a personagem quer: sentir coisas com intensidade, ainda que isso signifique machucar outra pessoa. Desde que ela esteja por cima, vale tudo.
Quando Mathieu pensa que finalmente se livrou de Conchita, ela retorna para se vingar, visto anteriormente pelo espectador no momento que ela entra no trem escondida. Ele não vai conseguir escapar dela nem se quisesse, e a cena final deixa isso bem claro, com a mulher que remenda um vestido rasgado e sujo. O relacionamento sempre vai ser como o vestido, que pode ter sido bonito um dia, mas se encontra sujo, destruído, a destruição representando a agressividade presente entre os dois. Os dois encaram o vestido por um longo tempo, e o vestido sendo remendado, mas o problema principal ficando sem ser corrigido. Conchita é a primeira a sair, a perder o interesse. Ela não se importa nem com a relação (vestido), nem com o homem. Ele é quem fica encarando o vestido por algum tempo, encantado como se encanta pela relação com a mulher, algum tempo depois percebendo que Conchita saiu dali. Novamente, ele que vai correr atrás dela, atrás do relacionamento quebrado que ambos têm. O ciclo se repete.
É possível que Conchita esteja certa ao afirmar que, se der a Mathieu o que ele quer, ele vai abandoná-la. O obscuro objeto continua a ser desejado, sem jamais ser alcançado, e isso instiga mais curiosidade e vontade do que tê-lo de imediato. Dessa forma, Mathieu sempre vai correr atrás dela, e ela sempre vai fugir, o desejo sempre continuando a existir entre eles, continuando a ser obscuro. Não seria desejo sem a antecipação, não seria obscuro se aparecesse, por isso, para resolver o título do filme, a relação dos dois continua não resolvida.