A mais bela (1944)

O filme de Kurosawa acompanha um grupo de mulheres que trabalham em uma fábrica de lentes no Japão da Segunda Guerra Mundial.

Críticos:

Marcia Oliveira
Edeizi Monteiro Metello
Antonio Celso
Pablo Paz

O segundo longa-metragem do diretor Akira Kurosawa foi lançado em 1944, enquanto a Segunda Guerra Mundial ainda estava em curso. E talvez por tematizar os bastidores japoneses durante este conflito é comumente situado na prateleira dos docudramas. A mais bela (1944) é um filme de propaganda de guerra e essa diretriz é reforçada por meio do estigma contido em elementos visuais e sonoros – música militar, os discursos disciplinados, as cartelas e os cartazes com dizeres nacionalistas – empregados na composição da narrativa. Os contornos documentais são adensados pelo cenário realista. A ficção acontece no interior de uma indústria de lentes ópticas para fins militares e as gravações ocorreram nas instalações de uma fábrica real. A locação escolhida é dotada de aspecto desolador acentuado, fato que cria uma plástica visual muito próxima daquela vista no cinema neo-realista, mas as convergências com o movimento cinematográfico italiano parecem não ultrapassar os aspectos estéticos.

A obra está centrada na rotina das operárias responsáveis pela fabricação destas lentes que são utilizadas por aviões militares japoneses. A companhia opera com metas arrojadas e logo nos minutos iniciais assistimos aos dirigentes comunicando aos funcionários sobre a repactuação dos acordos de produtividade. Enquanto o informe é transmitido via rádio, os funcionários dispostos em filas são mostrados em pontos distintos do pátio por meio da alternância de planos. Há uma espécie de correspondência entre o enfileiramento dos planos, próprio da montagem cinematográfica, e o arranjo dos operários também em filas. No interior do quadro, nenhuma movimentação acontece; a imobilidade da câmera e personagens produz uma sensação claustrofóbica de passividade e remete ao caráter servil dos trabalhadores enquadrados. Um elemento ainda igualmente curioso da mesma sequência é que se trata de uma das poucas oportunidades para conhecer o perfil dos operários do sexo masculino. Nesse momento, é possível notar que há um número maior de jovens, em contraste com o grupo das mulheres, muitos dos funcionários ainda são meninos, de onde depreende-se que os adultos do sexo masculino foram mobilizados para o combate propriamente dito.

Assim que o comunicado sobre a mudança das metas se encerra, o espectador passa a conhecer o núcleo central do filme, composto majoritariamente por mulheres. As trabalhadoras altamente engajadas com as causas nacionalistas atribuem grande importância ao próprio trabalho e, assim como seus dirigentes, acreditam que dele depende o sucesso da nação na Guerra. O senso de coletividade evidenciado está afastado dos parâmetros ocidentais e aproxima-se de um retrato romantizado, que muito se afina com os exageros da agenda propagandista. Por meio deste elenco feminino a solidez do patriotismo japonês é reiteradamente afirmada e a despeito do romantismo ficcional é preciso salientar que esse sentimento de unidade encontra, em alguma escala, reverberação na realidade histórica do Japão. As mulheres também são bastante jovens, mas aquelas com traços infantis não estão em grande número. À medida que as personagens vão sendo introduzidas, o espectador descobre que além de compartilharem o mesmo ambiente de trabalho, elas sustentam um patriotismo desmedido. É exatamente esse o combustível para o primeiro ponto de virada da narrativa. Após terem recebido um acréscimo das metas que simboliza 50% do que fora proposto para o grupo masculino, as operárias começam a criar um clima que indica um motim iminente. O espectador é induzido a concluir que as mulheres estão insatisfeitas pelo redimensionamento dos desafios, agora muito maiores. Todavia as funcionárias se mostram insatisfeitas porque desejam produzir mais do que lhes foi atribuído, elas então propõem e comemoram o aceite de uma produção acrescida em 70%.

Agindo como quem está sob o efeito de um transe, essas mulheres abdicam de suas subjetividades, de suas famílias e inclusive se submetem a sacrifícios desumanos a fim de não interromper suas jornadas de trabalho. Para além do enfoque patriótico, a servidão voluntária e uma espécie de alucinação coletiva sobressaem-se. Essa distorção do que seria o ideal de honradez, culmina em ações patológicas e extremadas quando, por exemplo, as operárias, já em quadros críticos de exaustão, ocultam problemas com a própria saúde porque estão comprometidas com o alcance das metas pactuadas, as quais, como dito, impactam o desempenho do país na Guerra.

O protagonismo feminino é um aspecto louvável da obra, especialmente quando se considera que a filmografia de Kurosawa é repleta de narrativas feitas pela perspectiva masculina, todavia o tom arrolado para a construí-la deprecia valores humanistas tradicionalmente desprezados em contextos bélicos. Resta saber se Kurosawa pretendia desvelar os mecanismos que mantêm o status quo ou ratificá-los, posto que ambas as hipóteses de leituras são perfeitamente factíveis.