Pablo Borges Paz tece comentários sobre o longa-metragem de Lázaro Ramos estabelecendo paralelos com um texto seminal de François Truffaut contra a espetacularização do cinema.
Estas notas não possuem outro objetivo senão tentar definir uma determinada tendência do cinema brasileiro.
Embora dezenas de longas-metragens brasileiros sejam produzidos anualmente, apenas dez ou doze conseguem chegar à tela de cinema. Desses, somente um ou dois conseguem algum tipo de destaque na mídia ou algum rebuliço com o espectador. Em ambos os casos esses filmes são os mesmos: produções/coproduções da Globo Filmes. Esses filmes, em sua maioria, podem ser definidos como “globochanchadas”. Isto é, tentam resgatar miseravelmente trejeitos das comédias pastelão da Atlântida, excluindo a parte mais importante que seria os números musicais. Um exemplo notório seria O shaolin do sertão (2016), ou produções/coproduções internacionais. Ultimamente se tornou recorrente o chamado “filme importante”. São aqueles filmes que sabemos no nosso inconsciente serem ruins, mas tememos discordar da opinião da massa já que eles tratam de temáticas “atuais”. Esses filmes, de maneira geral, entram em uma categoria que convenho aqui chamar de “filme premissa”, longas que possuem uma premissa instigante o suficiente para que motive a sua própria existência e leve o espectador a assisti-lo. Contudo, são supérfluos na capacidade de se mover além da ideia inicial. Entram nesse bolão M8 – quando a morte socorre a vida (2019), Democracia em vertigem (2019), Bacurau (2019), Que horas ela volta (2015), Divino amor (2019), A vida invisível (2019), Marighella (2021) e o assunto da semana, Medida provisória (2022).
Crítico esses filmes “por menosprezarem o cinema ao subestimá-lo” (TRUFFAUT, 2005, p. 265). Eles habitam, com certa naturalidade, um limbo no qual eles não são filmes de roteiristas, nem de autores. Digo naturalidade pois eles transformam em algo normal a ausência de conteúdo, de estilo e uma certa preguiça em se fazer cinema. Demonstram ignorância quanto a mise-en-scène (sim, Gabriel Mascaro, existe algo além do plano geral), são incapazes de filmar e de se expressar por meio da câmera, do mesmo modo como um escritor faz com sua caneta. Ao mesmo tempo em que não conseguem escrever um roteiro que apresente profundidade em qualquer nível, constroem personagens unidimensionais, estereótipos jogados aos nossos olhos. Os diálogos são enfadonhos, embaraçosos, imitações literárias que por consequência destrói qualquer pretensão de se produzir uma boa atuação. Vejamos os casos de Dira Paes, Sônia Braga (Aquarius) e Regina Casé que são desperdiçadas em seus respectivos filmes por um elenco inferior e por diálogos duvidosos. Esses filmes “contam a mesma história: trata-se sempre de uma vítima” (TRUFFAUT, 2005, p. 265). A auto indulgência com que Jeferson De constrói seu protagonista em M8 é constrangedora. Este filme se coloca como objeto importante na discussão do caso Medida provisória. Não só Lázaro Ramos faz uma figuração rápida no filme, mas Medida é um herdeiro direto de M8.
Ambos filmes trabalham no campo da explicitude, daquele que mostra, fala e repete para que não haja dúvidas. Se apreende algo além de que racismo existe e é ruim em M8 ou Medida provisória? Se abrange qualquer tipo de discussão além do superficial? Essa mediocridade discursiva leva a um paradoxo no qual ambos filmes são escritos e dirigidos por homens negros e conseguem aparentar serem dirigidos por brancos, tamanho é a caricatura proposta pelos longas (Seu Jorge pintando seu rosto de branco era para ser uma piada? Os policiais em M8 parecem figuras saídas de uma esquete do Zorra total). Se atentar ao lugar de fala é de grande importância. Porém, quando não se tem o que falar, do que adianta? É claro que assistir no cinema um filme protagonizado e concebido por brasileiros negros é excelente e necessário. Negar isso seria negar o racismo estrutural de nosso país. Entretanto, como afirmado por Silvio Almeida, representatividade não é presença, diversidade negra não é poder negro. Pintar um muro mofado de cor diferente não corrige o seu problema e não altera a sua estrutura, se torna somente um esforço redundante (e um tanto hipócrita). O melhor exemplo aqui é Marighella, um filme sobre um revolucionário comunista gravado no mais padrão dos formatos burgueses: o melodrama.
Por outro lado, o olhar masculino fica mais que nítido. Chamo atenção especialmente à cena de aborto em Medida e para todas as personagens femininas em M8. Esses dois filmes – mas também todos aqueles citados anteriormente – covardemente se submetem a discursos politicamente corretos e forçam a qualquer maneira uma discussão retirada do “manual do bom militante”. Sim, é claro que o politicamente correto é essencial como boa prática de socialização. Entretanto, estamos aqui falando de manifestações artísticas e nesse contexto o artista deve e pode manter a sua liberdade de abordagem a quaisquer temas, sem maquiar suas impressões. Esse tipo de argumentação fast food – corroborado pelas próprias declarações e personalidades de ambos os diretores – cria um ambiente de pregação a convertidos, visto que propagamos preconceitos e ideias esquemáticas que nos fecham em uma bolha. Gostaria aqui de ressaltar a retratação dos evangélicos em Divino amor (que beira a intolerância religiosa) e em Medida provisória (um rocambole de prenoções interpretada por Renata Sorrah). Esses filmes se tornam mais conservadores do que, em suas claras boas intenções, desejariam ser (ANGIOLILLO, 2015).
Fontes:
TRUFFAUT, François. “Uma certa tendência do cinema francês”. In: O Prazer dos Olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 257-276.
BERANGER, Thiago. Lázaro Ramos desperdiça uma ótima premissa em um filme que não acredita em sua própria potência. Disponível em: <https://cinemacomcritica.com.br/2022/04/medida-provisoria/ >. Acesso em 24 de abril de 2022.
ANGIOLILLO, Francesca. A indulgência do filme “Que horas ela volta” de Anna Muylaert. Disponível em: <https://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/09/1683170-a-indulgencia-do-filme-que-horas-ela-volta-de-anna-muylaert.shtml>. Acesso em 02 de maio de 2022.
A POLÊMICA DO “LUGAR DE FALA” – RITA VON HUNTY | EMBRULHA SEM ROTEIRO. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oT4f2os48X0&feature=youtu.bel>. Acesso em 26 de abril de 2022.
JUNIOR, Antonio Celso de Castro Cuyabano.
NETO, Olavo Fernandes de Rezende.
CORREIA, Gabriel Costa.