Amarelo manga (2002)

O polêmico e original filme de estreia do pernambucano Cláudio Assis é analisado pelo discente Henrique Souza Camargos.

Críticos:

Henrique Souza Camargos

Amarelo manga: Um ciclo vicioso entre o ambiente e os personagens*


O filme Amarelo manga (2002) mostra uma Recife que não está em nenhum cartaz para inglês ver, com suas praias e músicas, ao contrário, é o seu subúrbio e todas as suas mazelas que é mostrada no filme, que pode ser resumido em três tópicos: 1) É o dia que se repete, a incessante esperança da novidade e da felicidade, que inclui, especialmente, nesse filme, a incapacidade de sair de um corpo engessado pelo convencional, de um certo modo, ideológico e massacrante. 2) O desespero diante do passageiro, daquilo que, diante da própria repetição, perde seu valor quando se trata do acontecimento. Do mesmo modo, 3) a entrega de si diante da paixão como uma tentativa de escapatória desse ciclo que parece ser tão difícil de romper.


Amarelo manga é um filme cru que é realçado pelo tom amarelo da fotografia, ora um amarelo mais evidente e claro, ora um mais opaco como ferrugem. Uma cor perfeita para realçar os três núcleos existentes no filme: o velho e caindo aos pedaços Texas Hotel do simpático Bianor (Cosme Prezado Soares), assim como o Bar Avenida, onde os piores homens podem se sentar para beber uma cerveja, da força da natureza Lígia (Leona Cavalli) e o açougue onde trabalha Wellinton Kanibal (Chico Díaz) que possui o apelido de Kanibal porque ele diz que mataria qualquer um, menos sua esposa Kika (Dira Paes). Três lugares que representa bem uma decadente Recife, onde tudo acontece, mas nada sai do lugar. Uma Recife sem glamour e sem esperança. Uma Recife amarela.


O filme começa com a Lígia abrindo o bar em um monólogo que exalta como o dia se arrasta mesmo com tantas coisas que acontecem durante, para chegar a noite, a parte mais divertida com música e gente dançando e, sem nenhuma novidade, por isso mesmo, passando rápido. Essa primeira cena se complementa em outra, quando ela conversa com o bicheiro dizendo que tinha sonhado com o dia que estava por vim, sabendo exatamente o que aconteceria. E ela sabe o que vai acontecer durante o dia, não porque sonhou, mas porque os dias são iguais: os mesmos homens bebendo, os mesmos assediando-a, na qual reage com uma ferocidade que só o feminino ferido pode proporcionar. É a personagem, dentro do filme, que representa a mesmice. É a personagem que mais se machuca com essa mesmice que tem, como consequência, uma profunda dor de existir: a violência da solidão dos que perderam a esperança de que a vida não pode proporcionar mais do que aquilo que se mostra. O filme começa e termina no mesmo modo que começou: o monólogo da Lígia de como tudo se repete. Intrinsicamente, nesta Recife.


Do segundo núcleo temos o Hotel Texas de Bianor que é um senhor simpático, porém, sem ter a força de ser verdadeiramente amado. É quase como se fosse um conveniente utensílio dentro do próprio Hotel. A sua utilidade recai sobre isso. É por isso que vemos, quando da sua morte, que seu corpo sem a consciência da mente, é um vaso quebrado no chão perigando dos outros pés serem cortados. Além do Bianor, há no Hotel um faz-tudo, Dunga (Matheus Nachtergaele) que cozinha e limpa o aquele ambiente. Este é um personagem, dentro da narrativa, que também não possui perspectiva, além dessa Recife, e por isso se entrega à paixão, mesmo que signifique trair e ser falso com sua amiga Dayse (Magdale Alves), esta também amante de Kanibal. As consequências da ação de Dunga é: levar Dayse para o hospital e liberar Kika do marido e de si mesma. Mas essas consequências pouco importam para o personagem, que estava mais preocupado em saciar-se, ou seja, ter na cama Kanibal. O resto, para ele, pouco implicava em vista de um momento de raridade no qual a vida poderia valer a pena, no qual sua solidão seria amenizada. É um personagem que, creio, parece muito com todos nós.


No último núcleo do filme vemos o casal Kika e Kanibal. Esta é uma mulher crente, uma boa mulher, uma dona de casa que faz um sexo convencional. Essa é a desculpa que Kanibal usa para trai-la. Kanibal é um personagem contraditório: ao mesmo tempo que defende a esposa quando a amante a ofende, ele mesmo a desrespeita ao quebrar a sua confiança. Ao mesmo tempo que diz amá-la, a trai e chora quando é largado. Esse homem bruto também tem um coração, apesar de pequeno e de só se sensibilizar quando é ferido com sua própria dor. Deste núcleo é Kika que se torna uma personagem interessante, quando se mostra a cena dela transando com Isaac (Jonas Bloch), o mesmo que mora no Texas Hotel e apanha de Lígia em seu bar. É interessante no seguinte sentido: antes de pegar em flagrante a traição de Kanibal com Dayse, há uma cena que mostra ela pegando batom escondido do guarda-roupa. Eis uma simbologia de sua luta interna entre ser o que desejava ser em detrimento de seguir sendo o que lhe foi convencional ou imposto. Depois da traição se quebra essa dicotomia, não há mais dúvidas, cabelos serão cortados e pintados. O corpo urge em Kika querendo espaço, querendo vida, tirando de si o resguardo do além-da-vida, que no fundo não é vida e maltrata o corpo.


Nesta recife de Amarelo manga, não é só as paredes que determinam sua decadência, mas também as pessoas que habitam nela. A falta de perspectiva, a solidão, o que se mostra convencional na tentativa de criar uma normalidade e um senso de comunidade; tudo isso ajuda a criar um ciclo vicioso, um Ouroboro, no qual essa Recife se alimenta das pessoas e as pessoas se alimentam desta Recife. Não há vilões e vítimas aqui, cada personagem carrega um pouco dos dois.


Para terminar essa crítica um poema de Renato Carneiro Campos, citado no próprio filme e que resume bem esse película:


Amarelo é a cor das mesas,


Dos bancos, dos tamboretes,


Dos cabos das peixeiras,


Da enxada e da estrovenga.


Do carro de boi, das cangas,


Dos chapéus envelhecidos,


Dá charque.


Amarelo das doenças,


Das remelas dos olhos dos meninos,


Das feridas purulentas,


Dos escarros,


Das verminoses,


Das hepatites, das diarreias,


Dos dentes apodrecidos



*Material produzido originalmente para a disciplina Cinema Brasileiro - 2021/2.