Deserto particular (2021)

Daniel é um policial exemplar, mas acaba cometendo um erro que coloca em risco sua carreira e sua honra. Filme de Aly Muritiba analisado por Henrique Souza Camargos.

Críticos:

Henrique Souza Camargos

Deserto particular: o deserto de um homem floresce na caatinga da Bahia



Deserto particular (2021) é um filme de um homem, no caso, um policial militar que cometeu um erro grave dentro da corporação, esse policial se chama Daniel Moreira (Antônio Saboia), que vai viajar 2700 quilômetros em busca de um maior entendimento e conhecimento de si para quebrar as próprias barreiras que foram criadas socialmente; além disso busca fugir do ambiente que proporcionou esse erro. Essas barreiras exigem lágrimas e sangue como o preço para serem derrubadas; exigem o sentir mais do que a lógica, sendo esta também parte importante de uma construção social que viabiliza o status quo.


Contextualizando: Daniel é, no presente do filme, um homem afastado da polícia e que cuida do seu pai (Luthero de Almeida) praticamente sozinho, tendo, de vez em quando, a ajuda de sua irmã Débora Moreira (Cynthia Senek). No caos de sua vida atual, Daniel encontra afago somente nas conversas por Whatsapp com a Sara (Pedro Fasanaro). Mas depois de uma foto íntima mandada por ele pedindo retribuição por parte dela, ela some e não manda mais notícias.


É neste contexto que Daniel decide largar tudo, ignorando futuros problemas judiciais, deixando o pai aos cuidados da irmã que ainda está na faculdade, para viajar de Curitiba à Sobradinho, uma cidade do interior da Bahia. Daniel, pelas circunstâncias atuais, é um homem desesperado, mesmo que a gente veja seus gestos bondosos ao longo de todo filme, mesmo que depois vejamos que essa bondade é delimitada pelas questões sociais que vão perpassar o personagem durante o filme e o conflito resultante disso será a evolução do personagem e a descarga de todo o peso de suas costas, tentando agarrar-se a única pessoa que conhece ele verdadeiramente, sem estar sob os olhos desconfiados de quem o rodeia.


O filme, após a introdução que exibe as consequências de seu erro em seu mundo até então constituído e firme, parte para um pequeno trecho de Road Movie mostrando sua viagem do sul ao nordeste, em fotografias belíssimas do interior deste Brasil, para, só então, concentrar sua ação na cidade de Sobradinho. Lá ele tenta desesperadamente encontrar Sara, que continua ignorando suas mensagens e ligações, ao ponto de colar cartazes de procurado da moça. Quando ele consegue estar frente a frente com ela por intermediário do Fernando (Thomás Aquino), este um amigo dela, o encontro é fugaz e belamente construído, a cena tem textura e nuance, transmitindo exemplarmente o amor dos dois, ainda por cima ao som de Bonnie Tlyer com a canção Total eclipse of the heart. A cena é linda porque é fugaz, depois do beijo ela sai correndo dele, mostrando que nas nuances do amor há conflitos e dúvidas.


Há um conflitos e dúvida explicitamente em Sara, pois Daniel não tem suspeita nenhuma de quem Sara é, ele a quer desesperadamente, jurando a conhecer por completo. A pergunta que fica é: quais os conflitos e duvidam que permeiam o pensamento de Sara? O conflito é em relação ao erro de Daniel, que o filme não verbaliza, não mostra ao público a não ser por intermédios da sugestão, e pela sugestão, se nota que foi um erro grave e violento. Sara tem medo que o amoroso Daniel que se mostrou a ela por mensagens e áudios seja tão somente uma máscara usada para conquista-la e manipulá-la. Já as dúvidas em Sara permeiam em sua omissão, ela não disse que era uma mulher trans. Ela se pergunta: será que ele vai me aceitar como sou? Não se enganem, esta pergunta não busca esconder uma vergonha por ser quem é, ou mesmo uma fragilidade por ser quem é, ao contrário, Sara sabe muito bem quem é, dos seus desejos, e os aceita e os abraça. Não há traços de arrependimentos na construção de sua personalidade e a gente vê isso claramente em uma cena onde há o conflito entre ela e o pastor (Flávio Bauraqui).


Qual a solução de Daniel para acalmar Sara diante desse conflito e dúvida? Em relação ao seu erro, ele vai dizer que, como homem e depois como policial, não foi ensinado a mostrar fragilidade, sentimentos, não foi ensinado a buscar nas lágrimas a calmaria de um mar tranquilo. Essa ilusão de tão somente força e fortaleza que permeia o homem, que faz buscar um ideal de “homem-fortaleza”, cobra sempre um preço caro depois. Mas se a gente olhar adiante, veremos que há algo a mais: a violência que proporcionou o erro de Daniel não foi apenas por sentimentos recalcados por fugir de um ideal de masculinidade, talvez por um outro recalcamento mais profundo: da sua própria sexualidade. Esse recalque pode ser demonstrado na atitude violenta que teve em relação à irmã quando esta contou que estava namorando outra mulher. Além disso, nos mostra que Sara tinha razão quando sentia dúvida. Daniel não a aceita, se sente enganado e quer explicação. Como pode ser normal um homem se sentir mulher? Como pode ser normal dois homens se relacionarem amorosamente? Tudo isso não passará de aberração para ele. Porém, ele a ama verdadeiramente e não consegue fugir desse amor e desse tesão que sente pela Clara – há uma cena dele transando com uma mulher cis, mas pensando na Clara. E é esse amor tão forte que o faz sentir ser especial, porque, finalmente, fora das amarras sociais, ele pode se mostrar verdadeiramente como é – um homem bondoso. Esse amor vai descontruir, de novo, tal como o erro cometido, o mundo de Daniel. Este erro que desconstruiu o mundo de Daniel foi um caminho para que ele pudesse deixar tudo para trás e se deixar construir pelo amor que sente por Sara. Mas foi questão de escolha e coragem. Ele poderia facilmente se adaptar e conviver neste velho mundo que está caindo aos pedaços.