Hiroshima, meu amor (1959)

Olavo Fernandes e Pablo Borges Paz revisitam um dos marcos do cinema moderno francês traçando paralelos de diversas naturezas com realizadores e títulos do período.

Críticos:

Olavo Fernandes
Pablo Paz

Feridas Como Rosas Cálidas


Alain Resnair desenvolve em Hiroshima, Meu Amor mais um depoimento direcionado ao pesar das guerras e a importância das memórias perante as consequências de um passado padecente. Os primeiros minutos do filme se assemelham muito a outra obra do cineasta, Noite e Neblina (1956), onde Resnair também utiliza do conteúdo gráfico de natureza chocante para estabelecer uma perturbação que, no curta metragem, serve para construir o relato que o filme deseja contar, enquanto, no longa, se engaja no caráter da constituição dos personagens, construindo um background que molda a personalidade e relação entre eles.


Moinantemente é desenvolvido o trauma amoroso da protagonista que prospera a trama, trazendo impacto direto com o novo romance que a mesma vive. Apesar dos ornamentados diálogos em que ela narra a experiência e expõe seus sentimentos em relação a tal fato, Resnair recorre a semiótica para estabelecer traços inerentes aos personagens. Por exemplo, na cena onde, ao observar o movimento da mão de seu par romântico adormecido, a personagem se recorda instintivamente da morte de seu namorado na Segunda Guerra Mundial, o diretor insere um rápido flashback estabelecendo o abalo que ela carrega para depois avultar tal feição através da conversação do casal, que se estende por todo o filme.


Talvez o grande pecado de Hiroshima, Meu Amor seja o desenvolvimento ínfimo do protagonita, uma vez que exploramos todo o passado e os conflitos da personagem feminina, enquanto as camadas de desenvolvimento dele são abandonadas, deixando o personagem um tanto quanto superficial, pois sua característica mais dominante se resume a vontade indômita de manter o romance. É importante frisar que o mesmo diz que sua família estava em Hiroshima no dia da tragédia e, ainda assim, o impacto do trauma é languidamente esmiuçado. Porém, graças ao meticuloso tratamento dado à personagem principal, esse problema não impede o filme de operar nas entrelinhas que ele propõe.


Também é interessante observar os traços autorais do cineasta que se apresentam na obra, além de adotar a guerra e a memória como fator central da narrativa novamente, ele também não nomeia seus personagens dentro do filme, algo semelhante com o que faz em Ano Passado em Marienbad (1961). Porém, o traço narrativo que se assemelha nos dois longas é a dissociação cronológica, pois, ao mesmo tempo que se acompanha os acontecimentos do tempo presente, o enredo resgata os eventos passados em paralelo, costurando as linhas temporais de forma a conceber a estrutura narrativa. Esse cinema desconstruído narrativamente surge fortemente nos anos 50 com filmes como os de Alain Resnair e O Grande Golpe (Stanley Kubric, 1956) como um vanguardismo da linguagem cinematográfica.


O fator metalinguístico em determinada passagem do filme em que visitamos o set de filmagem onde a atriz trabalha, também se tornou muito presente no contexto nouvellevagueano, em filmes como O Desprezo (Jean-Luc Godard, 1963) e A Noite Americana (François Truffaut, 1973).


A plasticidade do cineasta adquire realce com o controle pleno da câmera, usufruindo de travellings e quadros fechados com iluminação contrastada, gerando silhuetas e preenchendo parcialmente o corpo e rosto dos personagens, logrando um aspecto caravaggiano a indentidade visual da fotografia para reforçar o caráter acabrunhado do filme. É nítido o traço do autor se observarmos a funesticidade de sua obra anterior (Noite e Neblina) e a ousadia estética de seu longa posterior (Ano Passado em Marienbad), usando de forma ainda mais intrépida a descontinuidade narrativa, quebra do espaço-tempo, os planos longos e o deslocamento de câmera.


Resnair ainda flerta com uma feição alvissareira quando apresenta Hiroshima como uma cidade reconstruída e promissora, porém enfatiza o peso dos traumas através dos conflitos da protagonista. Assim, fica estabelecido o efeito da lembrança como uma capitulação histórica que nunca deve ser esquecida. O impacto da memória é realçado pelo diálogo final, que da ênfase em como uma mossa tem poder definidor, por isso, os personagens se nomeiam com o nome de suas respectivas cidades natais, reiterando a memória como uma forma de acalentar feridas.


“Um dia, meu amor, sua enternidade chega ao fim”