Garotas (2014)

Terceiro longa-metragem dirigido por Céline Sciamma, Garotas conta a história de Marieme a partir do encontro com três novas amigas.

Críticos:

Pablo Paz
Henrique Souza Camargos
João Gabriel Peres

Garotas (2014): Roda viva



Em seu terceiro longa-metragem, Garotas (Bande de filles, 2014), Céline Sciamma desloca sua afetuosa objetiva dos subúrbios da classe média branca francesa para a periferia predominantemente negra. Marieme (Karidja Touré) é reprimida em seu ambiente familiar, ela busca uma nova identidade e se junta a três garotas. Ela muda sua personalidade, roupas e cabelos na esperança de que este será um caminho para a liberdade.

 

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu.

 

Ao sermos introduzidos a Marieme, somos alocados a uma diegese de opressão, seja na forma da violência física da partida de futebol americano; seja na repressão sexual que seu irmão mais velho inflige sobre a jovem e sua irmã mais nova; seja na repressão dos membros masculinos da “gangue” de seu bairro. O sentimento cotidiano é o medo, a linguagem corporal expelida por Marieme é essa, ombros e cabeça baixos tentando desviar de qualquer conflito. É essa versão da personagem “principal” - em tempo, podemos dizer que Marieme é nossa âncora narrativa, porém não a nossa protagonista propriamente dita, no longa se destaca mais o coletivo do que o individual -, que fica sem reação ao ser acossada pela vendedora branca e racista de uma loja de departamento. Resumindo, temos uma personagem passiva, vítima do destino e de seus articuladores, que não consegue acompanhar as mudanças ao seu redor, é sempre deixada para trás. Nota-se que na caminhada de volta do jogo de futebol americano ela acompanha todos e fica isolada ao final, voltando sozinha para casa.

 

Marieme é abandonada pela sua família, não temos informações sobre seu pai, sua mãe é tomada pelo trabalho e seu irmão está interessado tão somente na satisfação de seus desejos. Mas ela é desamparada também pelo Estado, que prefere que ela siga para a formação técnica do que o ensino médio, estão mais interessados em mais uma mão de obra jovem e apta do que um ser humano crítico. Nesta cena em específico, percebemos uma certa ligação entre Marieme sendo barrada do Ensino Médio com a situação similar de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) no longa seminal de François Truffaut Os incompreendidos (Les quatre cent coup, 1959). Ao serem, em um plano fixo e longo, questionados por adultos sobre suas vidas e decisões, nunca vemos os interrogadores, ouvimos somente as suas vozes. Marieme e Antoine padecem dos mesmos problemas familiares, são vítimas por demasiado tempo e se rebelam contra “tudo isso que tá aí” e enveredam para uma vida “selvagem” (faire les quatre cent coup), cada um à sua maneira. 

 

Ou seja, não há qualquer terceira parte interessada no futuro ou bem estar de Marieme, é ela por si própria…

 

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

 

… Até que ela encontra um bando que atende às suas necessidades.

 

Farta da repressão, Marieme decide tomar controle sobre seu destino, rejeita a escola técnica e se junta a Fily (Marietou Touré), Adiatou (Lindsay Karamoh) e a líder do bando de garotas, Lady (Assa Sylla). A aparente falta de significado de sua individualidade e de qualquer tipo de esperança com relação ao futuro faz com que Marieme busque na coletividade algum tipo de senso de pertencimento dentro do conturbado e confuso mundo ao seu redor. Sendo este um tema do longa de Sciamma: a facilidade que nós, como sociedade e indivíduos, temos em recorrer a violência (verbal e/ou física) como salvaguarda de nossas inseguranças. A sua mais nova “gangue” (uma versão hip-hop dos beatniks) preenche seu vazio existencial, uma solidão incessante que é momentaneamente ocupada pelo status e confiança que seu novíssimo grupo lhe dá. A saciedade se dá por meio da violência como engrenagem motriz das suas relações pessoais. É somente quando Marieme arrebenta uma rival que havia ganhado uma briga contra Lady é que seu irmão demonstra qualquer tipo de afeto e respeito; o bando de garotas constroem seus laços a partir do momento que ameaçam uma vendedora; Marieme concebe sua confiança a partir do momento que intimida uma aluna a lhe dar dinheiro.

 

É a partir dessa mudança drástica de personalidade que percebemos o cerne deste filme como sendo um conto sobre amadurecimento (coming of age) e exibe os triunfos de Sciamma como roteirista. Apesar de apresentar uma forma atípica, em um filme, digamos assim, bem francês, o conteúdo dramático segue o beabá já conhecido: primeiro amor, dificuldades escolares, brigas entre colegas de classes, enfrentamento às autoridades. Temáticas que nos levariam instantaneamente a pensar que estamos assistindo a um filme de John Hughes. Isto é, embora uma realidade cruel, Sciamma decide por acolher essas temáticas de modo zeloso e não mórbido, isto é o longa não se leva a sério demais, como talvez se esperaria de uma diretora branca abordando causas de minoria racial. Marieme é madura para a sua idade, tem um entendimento da vida que causa surpresa e subverte as expectativas que jovens não tem noção de muita coisa, ela difere neste aspecto de um personagem como Antoine Doinel - também de maneira similar as personagens de Lírio d'água (2007) -, possui uma ingenuidade sobre a vida que chega até ser fofo (não há melhor exemplo que ele fugir de casa e decidir morar na casa de seu BFF); ser branco traz certas facilidades até mesmo no infortúnio. Essa separação racial que se diz a respeito de trejeitos de “branco” e “negro” agirem são bem delineados e alocam o papel central que os cabelos das personagens e em especial os de Marieme imprimem em suas mudanças ao longo da trama. Ao transitar para o grupo das rebeldes sem causa ela não somente começa a utilizar jaqueta de couro como também muda seu cabelo trançado para um cabelo liso.

 

Inspirada no sentimento de mudança, Marieme sai de uma situação familiar, fadada ao fracasso e mergulha em uma situação desconhecida …

 

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega o destino pra lá.

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

 

… E foi tudo ilusão passageira, que a brisa primeira levou.

 

A história está sempre em movimento, o sentimento – constante possibilidade – de mudança desejada nos motiva diariamente a tomarmos nossas decisões. Esse sentimento - mesmo que na maioria das vezes raso - de transformação para melhor é arrebatado pela imprevisível realidade dos fatos ou bem dizendo pela roda viva. Enquanto Chico Buarque discute a organização da classe trabalhadora que se dá em “rodas” de conversa, de samba, da dança que podem objetivar mover a história, dar dinamismo à "roda viva”, Sciamma explora os ciclos de mudanças de nossas vidas, mas não deixa de lado a naturalidade com que nos agregamos em rodas, vemos isso nas brigas entre os bandos de meninas e entre os times de futebol americano. Imageticamente a tela preta é utilizada como fio de transição (elipse) entre essas fases; sonoramente o sintetizador que aparenta estar em loop infinito de crescendo e diminuendo.

 

Sciamma com bastante coragem “mata” a sua personagem principal um pouco depois da metade do filme, em uma referência explícita a Psicose (Alfred Hitchcock, 1960), aqui Janet Leigh é trocada por Karidja Touré. A primeira cena em que vemos Marieme em sua versão renascida ela está de peruca loira (novamente os cabelos são essenciais) e procedemos em aprender que a Marieme que conhecíamos deixou (parcialmente) de existir. Ela abandona aquela personalidade, suas vestimentas, seu corte de cabelo, alguns amigos e até seus familiares. Esse abandono da família se agrava ao pensarmos no fato de Marieme ter abandonado sua irmã, após um sermão, e deixado-a à mercê de seu irmão agressor. Marieme, ao tentar escapar do ciclo de violências, o reproduz, relega a sua irmã assim como sua mãe ausente fez. Agora ela faz parte de outro bando, de homens brancos, porém o papel da violência não mudou nem um pouco. Aquele seu vazio continua presente, manifestado sempre por um olhar distante, doído de Touré. “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Marieme retorna ao seu antigo prédio e em seu peito a saudade cativa, faz força pro tempo parar.



Fontes:

 

BUARQUE, Chico. Roda viva. Intérprete: Chico Buarque de Holanda. São Paulo: RGE Discos, 1967, digital.

 

SILVA, Roniel Sampaio. Análise da música Roda Viva – uma perspectiva marxista. <https://cafecomsociologia.com/analise-da-musica-roda-viva/>. Acesso em 23 de setembro de 2022.