No mais conhecido filme de Céline Sciamma, ambientado no século XVIII, acompanhamos a história de Marianne, uma pintora incumbida de pintar um retrato de Héloise.
Retrato de uma jovem em chamas (2019) - Você sonhou comigo?
“Amor é apenas uma reação química que compele animais a procriar. Bate forte e lentamente desaparece”[1]. O pêndulo entre cinismo e crença no amor, sempre em movimento, indeciso. O que é esse amor? Os sete amores gregos: amor apaixonado (Eros); amor amigo (Philia); amor lúdico (Ludus); amor familiar (Storge); amor empático (Ágape); amor pragmático (Pragma); amor próprio (Philautia). “Uai”, mas por que esse desejo tão intenso em escrever, encontrar, cantar, dançar e endeusar o amor? Ora, “qualquer vida civil pressupõe algum valor intersubjetivo, a ser compartilhado por todos, aprendido e reproduzido”[2] e um desses valores é o réu. Problema é, essa aventura deve ser compartilhada, geralmente, com mais uma pessoa, daí a fonte de suas inseguranças, ansiedades e conflitos. Um dos maiores deles: como saber se aquilo que estamos vivenciando com o outro é real ou apenas ilusão? Mas para sabermos o que é real, precisamos defini-lo, “O real é apenas matéria bruta indiferente, corpos em interação. Causas e efeitos ininterruptos"².
Real = racional, biológico;
Amor = irracional, projeção.
Criasse na busca por está determinação, se algo é ilusório ou realista, uma incongruência, pode-se somente obter um dos polos (concreto/sentimental), é natural portanto a confecção de uma paranoia, de um certo cinismo, “não, não pode ser verdadeiro. Não comigo”. Requer convencimento próprio, uma “árdua jornada até a crença no amor e na possibilidade de ser amado”[3]. Mas por que queremos tanto ser amados? “Para Platão, o amor visa coisas boas, porque tal traz felicidade. Verdade e sabedoria são as mais confiáveis e belas de todas as coisas boas, e é por isso que Platão sugere que o amor não é um Deus, mas um filósofo”[4].
Em vez de filósofo ele também pode ser poeta, “ele fez a escolha de poeta” afirma Héloïse (Adèle Haenel) sobre Orfeu que não se aguentou e olhou para sua amada Eurídice – um amor além da vida. Pós-morte o que sobra de nós? Poeira e memórias, sim. Nada mais? As representações de nós mesmo, atualmente se pensaria nas centenas de milhares de imagens digitais que produzimos cotidianamente. Porém, nem sempre foi assim, era necessário um processo fotoquímico, natural, caro e longo para que o real fosse capturado. Entretanto, nem sempre foi assim, houve um momento em que as limitações tecnológicas, faziam de uma fotografia algo inconcebível. Nosso formato de reprodução era somente pinturas e desenhos. A percepção de terceiros sobre nós é mais limitada dessa forma, portanto criasse um suspense sobre a nossa imagem, logo se torna uma peça rara; oferta e demanda, o preço aumenta. É nesta lógica mercantil que por séculos casamentos heteronormativos eram arranjados. Como comprovante do contrato, se era demandado usualmente um retrato da jovem para seu futuro marido. O inverso não é verdadeiro, o homem não necessita envio de um retrato seu, a noiva fica no escuro, deve somente acatar. É para cumprir essa função que Marianne (Noémie Merlant) é contratada por A Condessa (Valeria Golino) para pintar um retrato de sua filha Héloïse. A realpolitk sobrepõe o amor.
Não se espera amar. Se apaixonar acontece aos poucos, morosamente, mas se sente de repente. Marianne assume sua paixão por Héloïse após informar a Condessa que a pintura de sua filha está finalizada, percebendo que seu quebra-cabeça está incompleto, que não compreendeu por inteiro a sua modelo. Isto é, ela apreendeu os traços gerais, mas não os detalhes. Não só isso, Marianne percebe que cometeu o mesmo erro que seu antecessor, independente de gênero ou nacionalidade, se tem uma coisa que artista é, é orgulhoso e narcisista – ela destrói seu trabalho, a partir do rosto, da fonte de nossa humanidade. Essa é a força resultante, não podemos nos esquecer das preliminares; toda equação possui uma solução e consequentemente, incógnitas.
Marianne despercebida, focada somente em seu ganha pão. É com esta mentalidade que ela chega naquela ilha – tanto a geológica; como também a própria Héloïse, uma pessoa isolada em si, de difícil acesso, o perrengue inicial que Marianne sofre no barco já é um indicativo disso. Seu processo de trabalho é estreitamente interligado com o flerte. Ele é indutivo e não dedutivo, ou seja, a partir do particular, se é observado e procurado um padrão. É o João e a Maria, damos pistas e seguimos pistas para o desconhecido, é um quebra-cabeça em constante mudança. Mesmo que breve, a procura pela solução é uma obsessão e quando a atingimos? Êxtase. O primeiro encontro das duas é sobre isso, observação, gato e rato. Marianne deseja ver o rosto da incógnita que seu antecessor não soube desvendar. Héloïse, solitária e entediada, esconde-se atrás de seu véu e estrategicamente fica a frente de nossa pintora, ela deseja manter o suspense até o momento que prefere se revelar – controle. Quando elas se descobrem, é puro arroubamento, respiração ofegante.
“O rosto é a janela para alma”, se diz por aí. O processo artístico de Marianne é ao mesmo tempo abstrato e material. Objetivamente, Marianne precisa memorizar aquela pessoa em todas os seus pedacinhos, falhas e qualidades, pois necessita transpor para a tela. É por esta razão que vemos o seu processo artístico do princípio ao fim, dos rabiscos à pintura final – é um processo de gradual descoberta -, ela precisa conhecer das orelhas de Héloïse até o jeito com que ela posiciona suas mãos, são constatações ao olho nu, apesar do olhar treinado da pintora, essas observações são físicas. Marianne se atém ao materialismo e, portanto, seu quadro é insuficiente. Ela exclui o metafisico, aquilo que não pode ser quantificado e é está a razão do sentimento de incompletude do primeiro retrato de Héloïse. Essa mudança de percepção por parte da pintora fica visível pelo contraste entre as interações – e sobretudo o contato visual -, entre as personagens do primeiro e segundo retrato. Os primeiros encontros entre as duas é um arranjo institucional, cada uma tenta compreender a outra, estão preocupadas demais, pensando no que dizer, como agir e como o outro irá reagir; os olhares são tímidos, roubados, não querem que uma saiba do interesse pela outra – predomina aqui o POV de Marianne. Após o consentimento de Héloïse e aceitação para posar, somos transportados para um campo, contracampo. Os olhares se tornam livres, o clima se torna jocoso, elas ficam confortáveis em serem quem são e a sinceridade toma forma (“Estou interessada em você”, diz Héloïse). Cria-se um clima de parceria, anteriormente inexistente, são amantes, mas também companheiras – melhor exemplificado quando Marianne ensina Héloïse a pintar, isto é, compartilhar com o outra aquilo que é mais pessoal e importante para Marianne. O segundo retrato é o resultado de uma experiência partilhada e não solitária – é amor e não trabalho.
“É um modo de evitar esperança” afirma Marianne durante a discussão com Héloïse, logo após o término do segundo retrato e de um momento de ternura entre as duas. As cabeças de ambas se tocam, plano conjunto, a discussão se inicia e cada uma se volta para um canto. Marianne se sente acuada, recorre ao seu cinismo e agressividade. Quando nos apaixonamos, criamos uma imagem daquela pessoa, de difícil reprodução, na superfície a briga é sobre isso (“você me acha dócil”). Entretanto, na realidade, o bate-boca expõe o problema de comprometimento de Marianne e a sua indecisão quanto aos seus desejos. Ela cobiça Héloïse e sua companhia, sente ciúmes, é possessiva, quer ela resista ao casamento arranjado. Ela expõe esse sentimento sem muita resistência, entretanto, não almeja fazer o compromisso e pedir para que ela fique – pois seria real demais e um salto ao desconhecido, o que traz desconforto e insegurança. A pintora quer acreditar que o amor das duas não foi verdadeiro, que tudo aquilo que sentiram e compartilharam não se passa de um sonho ou projeção; uma memória remota (o filme em si é um longuíssimo flashback). Dessa forma, ela consegue se distanciar dos eventos vividos e evitar qualquer esperança quanto ao futuro das duas.
Marianne e Héloïse se reencontram duas vezes. Real e reprodução. Ver Héloïse presencialmente, mesmo que distante, na ópera, com a música que a própria Marianne havia mostrado traz sentimentos engarrafados e que são soltos de maneira brusca. Esse segundo encontro cronológico é mais sobre Héloïse e como ela reage as memórias, Marianne é uma espectadora. O primeiro encontro é o decisivo para a pintora, vemos que ela transpôs seus sentimentos em arte, reinterpretando o conto de Orfeu e Eurídice, baseando-se em sua própria vivência, demonstrando que tudo aquilo foi deveras real. Mas é quando ela descobre que Héloïse fez o mesmo, reproduziu a vida na arte, que ela tem a confirmação que seu cinismo não é mais propício, que a armadura sentimental não é mais necessária e que “We will always have page 28.”
[1] No original “Love is just a chemical reaction that compels animals to breed. It hits hard, then slowly fades”.Rick and morty (2013-) temporada 1 episódio 06: Rick potion #09.
[2] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Amor_plat%C3%B4nico>. Acesso em 28 de setembro de 2022.
[3] Disponível em: <https://letterboxd.com/clarabarra/film/the-apartment/>. Acesso em 28 de setembro.
[4] FILHO, Clóvis de Barros, MEUCCI, Arthur. Da virtude à estratégia: os conflitos morais em A Grande Família. Comunicação & Educação, São Paulo, ano X, n. 2, p. 201-209, maio/ago. 2005.