A obra-prima de Martin Scorsese, vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes, é analisada pelo discente Pablo Borges Paz para a disciplina de Crítica e análise fílmica.
Ódio e nojo
Um monstro anda pela surtida da noite, sobre a fumaça das ruas de uma metrópole suja, o arrombamento da bateria de Bernard Herrmann impõe o desejo desse monstro em escapar, toda pressão necessita de um escape. A primeira aparição de Travis Bickle (Robert De Niro) em Taxi driver – motorista de táxi (Martin Scorsese, 1976) é um recorte de seus olhos calmos, escaneando Nova Iorque, seu globo ocular se desloca de um lado ao outro como um limpador de para-brisa, um limpador de sujeira. A luz predominante é vermelha como um semáforo servindo de alerta, sobre a personalidade do personagem e ao futuro deste filme. O azul logo aparece, a visão (plano subjetivo) de Travis dentro de seu táxi é distorcida e saturada, reminiscente de um Expressionismo. Nesta sequência se sobressai o vermelho e azul, como a bandeira do país que ele serviu na Marinha. A mensagem é nítida: a diegese que adentramos tem um protagonista claro, um conto em primeira pessoa.
“As your safety declines, so does your compassion. Everytime I have to pick up human shit my liberalness just got lowered one more notch”[1]. A frase anterior proclamada em 2021 se refere a uma residente de Austin, Texas, afetada diretamente pelo aumento radical no número de desabrigados em sua cidade e em seu país. Notoriamente, Paul Schrader criado em uma comunidade seguidora da Igreja Cristã Reformada bastante estrita, tão restrita que assistiu ao seu primeiro filme somente aos 17 anos[2], as memórias e sentimentos de sua infância seriam expurgado posteriormente em Hardcore: no submundo do sexo (1979); outro longa sobre o asqueroso submundo das metrópoles modernas. Schrader escreveu o roteiro de Taxi driver em 10 dias durante o seu momento de maior dificuldade, vivendo em seu carro, como um nômade moderno.[3] Ao abordar os temas deste longa e a mente de seu protagonista, Scorsese e Schrader poderiam ter tomado o caminho fácil e confortável, rotular o protagonista como um maniaco armado, sanguinário e apático como feito em O massacre da serra elétrica (1974) ou Halloween (1978). Contudo, o diretor e roteirista apresentam o filme, o personagem e por conseguinte a si mesmos na mais alta sinceridade e vulnerabilidade, tomando o caminho desconfortável, da controvérsia e da má interpretação, pois há poucas coisas tão difíceis quanta a autoconsciência e auto honestidade. Isto é, admitir que em uma escala ou outra os sentimentos profanados por Travis já navegaram mesmo que momentaneamente nossos pensamentos, em especial para quem viveu em locais como os vividos pelo protagonista.
Travis é um jovem perdido, afetado diretamente pelo senso de isolamento e abandono da geração Vietnã, daquela que foi a guerra e daquela que ficou no país natal. Aquela que comprou a peça patriótica publicitária, se candidatou a guerra e arriscou sua própria vida, apenas para retornar ao seu país fisicamente e/ou mentalmente danificados para tão somente serem renegados por uma parcela da sociedade. Essa temática já era de interesse de Scorsese em The big shave (1967) e de Schrader em A outra face da violência (1977). Resumindo, a consciência de Travis certamente não é tão limpa como afirma ao se candidatar ao emprego de taxista, talvez por isso tenha tanta dificuldade em dormir, numa guerra o sono é um privilégio, isso é reforçado pelo fato de Travis usar um saco de dormir como travesseiro. O apelido dele entre os taxistas é “Killer” (Matador) antes mesmo de o vermos assassinando qualquer pessoa, o apelido parece ecoar uma estigmatização jocosa do antecedente militar de Travis. O protagonista admite a sua necessidade de estabilidade e significado “all my life needed was a sense of some place to go”[4], ele continua justificando os seus sentimentos “I believe that someone should become a person like other people”[5]. A crença na normalidade, em um padrão de vida ainda continua como pilar para Travis, uma espécie de cartilha social: dinheiro, família e saúde.
É esta cartilha que ele inventa ao enviar uma carta aos seus pais. Ele arranja um emprego para dar significado a sua vida. O efeito que ele obtêm é o contrário seu senso de isolamento aumenta. Ao não conseguir atingir seu objetivo, ele tenta construir uma família, busca por uma mulher Betsy (Cybill Shepherd) que enquadre a imagem perfeita: branca, loira e pura (a primeira vez que nós e Travis a vemos, ela veste branco, ele a chama de anjo no meio da sujeira). A pureza buscada por Travis não é apenas sexual, mas também espiritual ele associa a sua má alimentação, o consumo exacerbado de comida processada e açucarada a impureza espiritual. Ao decidir assassinar o candidato a presidência Palantine, ele transforma a sua rotina física e alimentícia, decidi largar o uso de drogas também. Essa disposição dura muito pouco, o abuso de pílulas volta rapidamente.
O interesse de Travis em Betsy não é somente físico, ele vê nela um reflexo de si, a solidão além da aparência, uma tentativa de salvar o outro, ao mesmo tempo que salva a si. O breve relacionamento (se é possível chamá-lo assim) é marcado pela sinceridade, tanto positiva quanto negativa, isto é, a argumentação para que Betsy aceite ir tomar um café com ele, é extremamente direta, honesta e ingênua. Ao levar Betsy a um cinema pornô não há qualquer motivação oculta, mas uma desconexão social tamanha que faz com que ele acredite não haver problemas. Há uma presença do duplo no filme, por duas vezes Travis tenta salvar alguém (Betsy e Iris), por duas vezes ele busca por ajuda (com Wizard e Palantine), o vemos matando duas vezes. Ao tenta salvar e ser salvo, a fita trabalha com a personalidade contraditória de Travis, como muito bem afirmado por Betsy, ele ao mesmo tempo é uma vítima e um messias ou ao mesmo tempo a vítima e o agressor. O messianismo é representado pelo desejo de um diluvio que lave a sujeira moral que Travis tanto repete, está presente também na recorrente atribuição de Nova Iorque como uma Sodoma e Gomorra moderna.
A negação dos sentimentos mais mórbidos, mesmo que momentâneos e inconsciente, transforma em tabu determinados tópicos que por conseguinte normaliza a incomunicabilidade e a indiferença. Travis se abre a Wizard (Peter Boyle) que é incapaz em qualquer nível de compreender ou retornar os sentimentos a Travis, sem malícia, apenas um distanciamento social grande demais. Palantine ouve as visões politicas de Travis e rapidamente, assim como seus assistentes, dispensa como um maníaco qualquer. Aquele momento poderia ter sido uma ocasião de confronto e convencimento, ora o slogan do candidato é “We are the people” (Tom (Albert Brooks), está correto o sublinhado faz diferença), o candidato não está nem um pouco interessado na opinião do “povo”, o senador é tão hipócrita quanto o nosso motorista de táxi. Travis diz odiar o mundo asqueroso da pornografia, mas lá está ele todos os dias, ele odeia viciados em drogas, mas ele é um. Palantine se orgulha em viajar de limusine, ao se ver atrasado não contempla em qualquer momento pegar o metrô por exemplo, nem querer andar de táxi ele realmente deseja. Ao escutar o discurso de ódio de Travis ele apenas balança a cabeça, diz uma platitude qualquer, cumprimenta o motorista e a vida que siga – numa democracia o único interesse é o voto. Scorsese enfatiza a genericidade desse político e seu discurso vazio através do enfoque na gesticulação da mão[6] do candidato, uma cena que propositalmente deixa de fora o rosto de Palantine e recorta o detalhe desse movimento produzido e planejado.
A escolha de narrar as visões de Travis em primeira pessoa, presente pelo uso do POV e da narração que reproduz o diário pessoal do protagonista, realça a percepção de mundo do taxista e faz com que o espectador simpatize mesmo que relutante, de maneira similar o mesmo é atingido em Laranja mecânica (1971). Filme este que Taxi driver, sem dúvida deve a sua existência, filmes similares, porém diferentes. O primeiro, foca no Estado, o outro no indivíduo, o protagonista de um se orgulha de quem é e o outro se odeia. Entretanto, ambos discorrem sobre a relação tênue entre amor e morte, Travis é um racista, misógino, paranoico, mas antes de mais nada é um frustrado sexual que busca no falo de sua .44 Magnum abrigo. Ele impede um roubo, finalmente mata um jovem negro, desejo que ele vinha cultivando ao longo de todo o filme e em seguida o acompanhamos ao som de uma balada pop (Late for the sky de Jackson Browne), segurando a sua grande pistola e assistindo a casais negros se divertindo, o que lhe causa um ressentimento e nojo visíveis em sua face. Ou, bem dizendo “O erotismo deslocou-se da mulher para a morte, essa morte que a sociedade americana tende a ocultar, mas que, através da violência do poder, está no centro de seu funcionamento” (CIMENT, p. 51). Ele tenta matar a figura paterna de Betsy (Palantine), sem sucesso, ele mata a figura de paterna de Iris, o final do filme reafirma o Complexo de Édipo de Travis. Pois, ao ser contemplado uma nova chance com Betsy ele deve admitir que não deseja (ou nunca desejou), prosseguir sexualmente ou amorosamente com ela. Ele cobiça somente o platônico, o voyeur.
Referências bibliográficas:
CIMENT, Michel. Kubrick. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
[1] “À medida que sua segurança diminui, sua compaixão também. Toda vez que tenho que pegar merda, a minha liberalidade diminui um pouco”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=liptMbjF3EE&t=188s>. Acessado em 24 de fevereiro de 2022.
[2] Disponível em: <https://scrapsfromtheloft.com/movies/taxi-driver-underground-man-review-pauline-kael/>. Acessado em 24 de fevereiro de 2022.
[3] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ErfH5djFS7E&t=28s>. Acessado em 24 de fevereiro de 2022.
[4] “Tudo que a minha vida precisava era de algum senso de lugar para ir”.
[5] “Eu acredito que alguém deva se tornar gente como as outras pessoas”.
[6] Ver “George Bush hands”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VIORhtcxlqM>. Acessado em 25 de fevereiro de 2022.