Christine (1983)

Arnie compra um Plymouth Fury de 1958 chamado Christine, carro que parece ter personalidade própria. Reflexão de Pablo Paz para a disciplina de Crítica e análise fílmica.

Críticos:

Pablo Paz

Born in the U.S.A.


There is something almost sensuous about a beautiful piece of equipment[1]

(Stanley Kubrick apud Alison Castle, p. 16)

 

“Piece of americana”, uma expressão recorrente para referir a uma obra que capture a cultura e história dos Estados Unidos da América. A associação imagética continua, de forma geral, a aquela criado nos anos 1950: a goma de mascar; o muscle car; rock and roll; Hollywood e seu star system; os dinner; a calça jeans; o american dream. Christine, o carro assassino (John Carpenter, 1983) é indubitavelmente um pedaço, uma síntese dos EUA de Stephen King e Carpenter. O Playmouth Fury 1958, vermelho e branco de placa CQB 241 chamado Christine nasceu nos EUA e nasceu malevolente; “She could tell right away that I was bad to the bone[2], Imediatamente ao sair do útero, Christine demonstra para o que veio, ela morde a mão de um funcionário e comete a sua primeira baixa: um homem negro. O automóvel assim como a nação americana é concebida através de corpos pretos, posteriormente, no longa percebemos uma ausência de personagens negros, já que a fita se desloca para os subúrbios idealizados, onde somente a presença branca é bem-vinda.


Christine se vende inicialmente como, talvez um dos gêneros mais identificáveis do cinema americano, o high shool: bullying, o nerd virgem, futebol americano, armários, cheerleaders, amores platônicos; Resumindo, uma porção de Picardias estudantis. O filme apresenta essa premissa formulaica como uma isca ao espectador, o colocando em uma situação familiar para encetar a subversão e desenvolver suas reais intenções: boy meets car[3]. E, como sempre alguém ou alguma coisa deve entrar no meio do casal perfeito. Nós não descobrimos e nem vemos como Arnie (Keith Gordon) conquista Leigh (Alexandra Paul), por outro lado vemos o passo a passo do relacionamento de Arnie e Christine, o relacionamento garoto/carro é detalhado, o menino/menina é uma elipse. Leigh é apenas um acessório, uma posse com uma certa utilidade, que é satisfazer Arnie sexualmente e ser seu troféu para que ele possa mostrá-la para os seus detratores aquilo que eles não conseguiram obter. Entretanto ela deve fazer tudo isso ao mesmo tempo que se mantém como uma mulher de baixo custo i.e. não reclame demais e não dê trabalho demais. Ou seja, ela deve se comportar como um automóvel deveria. Christine ao contrário é uma paixão à primeira vista, que é destino de muito esforço braçal e financeiro de Arnie; Ele a contragosto de todos ao seu redor, persegue esse amor (quase) obsessivo. A inversão de papéis fica nítida após a tentativa de homicídio de Leigh por Christine (ou simples engasgo acidental?) a forma agressiva que Arnie trata Leigh destoa com o carinho que Christine é tratada, após se recusar a ligar o seu motor Arnie implora e faz promessas ao seu carro.


O passado rock and roll em Christine é relembrado de maneira diferente ao de Loucuras de verão (George Lucas, 1973), neste apesar de momentos agridoces, é uma lembrança nostálgica do ensino médio e de uma época que não existe mais. Nostalgia é portanto afeto; Em oposto, no longa de Carpenter o passado nomeia-se como uma ameaça, isto é, Christine é uma presença tóxica que arruinou a vida de seu proprietário anterior e arruiná a vida de Arnie. Apesar da similaridade visual manifestada entre os dois filmes, por exemplo nos carros; no figurino, cabelos e persona de Arnie que ao desenrolar do filme vai morfando cada vez mais a uma mistura de Elvis Presley, James Dean (a famosa jaqueta vermelha) e John Travolta (Grease) e princialmente no formato anamórfico, com seu característico halo de luz. A disparidade filosófica mostra-se no contraste de visão entre o rock and roll de Lucas e Carpenter, um vê como uma balada romântica, as canções em American graffiti se encaixam a época que a estória se passa 1962. O tema de Christine é Bad to the bone de George Throgood and The destroyers canção lançada em 1982, que toca na sequência de 1957 na fábrica de automóveis e também na última cena em 1979 e durante os créditos finais, ou seja, em ambas aparições a música consiste de um anacronismo.


Esse embate geracional é convocado logo de princípio ao pousarmos na cidade de Rockbridge (uma cidade fictícia, com o prefixo Rock sem dúvida intencional), Califórnia em 1978, quando Dennis o único amigo de Arnie – uma inconsistência na fita já que não há uma justificação para que um jogador de futebol popular seja tão bom amigo de um CDF –, o busca em sua casa em seu Mustang ouvindo uma música de rock em seu rádio a mãe de Arnie (Regina Cunningham) o repreende “It´s noise pollution[4], um forma de anacronismo social, “a música antigamente que era boa e não essa porcaria”. Ao terminar o longa com Leigh proclamando “God I hate rock and roll[5], parece ser um eufemismo para dizer “Deus eu odeio o que nós somos” ou “Deus eu odeio o que nos tornamos” ou “Deus eu odeio o que achamos que somos”


Will Darnell (Robert Prosky) dono de uma do it yourself garage[6] onde Arnie busca por peças para reformar sua amada, também tem a mesma desconfiança geracional, de cara já ameaça Arnie e Dennis, dando seu discurso de preconceitos imaginados sobre esses Jovens, loucos e rebeldes. A cultura do “faça você mesmo” é uma característica propriamente americana: coloque gasolina no seu próprio carro, monte seus próprios móveis (IKEA), dirija seu próprio caminhão de mudança e reforme seu próprio carro. Esse sintoma do capitalismo liberal, leva por consequência a cultura do carro, o egoismo urbano. “’Eu” preciso me deslocar quando ‘eu’ quiser e ‘eu’ não vou dividir o ‘meu’ espaço com outras pessoas”. Essa mentalidade individualista que na realidade não é nada mais que uma estratégia comercial das fabricantes de carros situadas em Detroit para que possam vender cada vez mais automóveis é justificada pela má qualidade do transporte público[7] que por sua vez é uma consequência da sanha dos setores públicos em satisfazerem os interesse privados. Os interesses econômicos de poucos se torna uma psique social de que carro equivale a poder, ou em bom português a status e como sabemos “Status é uma palavra chula […] um nome que o branco inventou pra foder com o preto”[8] (BROWN, 2018). Christine não somente um carro assassino ou um estranho prazer, é também um totem de autoestima; É o que faz Arnie criar coragem em enfrentar seus pais dominadores, que faz ele paquerar Leigh, transforma Arnie de um nerd a um cool guy. Quer dizer, ela dá a Arnie o status tanto desejado e é o libido em não perder esse status que causa seu fim à la James Dean, Arnie “Lived fast, died young, and left a good-looking corpse[9]


A escolha de localizar sua trama em uma cidade na Califórnia não parece coincidência, pois no cinema a cidade de Los Angeles é conhecida como a metrópole dos automóveis. É nela que posteriormente David Cronenberg (contemporâneo de Carpenter) filmara Crash – estranhos prazeres (1996) expondo que Christine não é o único carro com tendências sanguinárias, todos são; Explícita também a libido sexual e o motor. A trajetória de Arnie expõe essa linha tênue entre morte e sexo, é em Christine que Arnie tenta avançar sexualmente com Leigh e é dentro do carro que ela quase morre. Mas esse arco também demonstra a tênue linha entre excitação sexual e as máquinas de nosso cotidiano cada vez mais populado por equipamentos de todos os tipos. Arnie morre virgem, seu único prazer sexual, assim como o personagem de Kurt Russel (frequente colaborador de Carpenter) em Á prova de morte (2007) é poder massacrar pessoas com seu carro. A violência de Arnie e sua morte “está ligada um mal-estar sexual, a um estranho amor cuja única saída é uma morte não menos estranha” (CIMENT, p. 51); Arnie também afirma que Leigh é uma frustrada sexual (olha só a hipocrisia!).



Referências bibliográficas:

CASTLE, Alison (org.). The Stanley Kubrick archives. Nova Iorque: Taschen Editora, 2020.

 

CIMENT, Michel. Kubrick. São Paulo: Ubu Editora, 2017.


[1] “Há algo quase sensual em um belo equipamento”.

[2] “Ela podia dizer imediatamente que eu era ruim até os ossos”.

[3] “Garoto conhece carro”.

[4] “É poluição sonora”.

[5] “Deus eu odeio rock and roll

[6] “Oficina faça você mesmo”.

[7] Ver <https://www.youtube.com/watch?v=-ZDZtBRTyeI&t=107s> para mais informações.

[8] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gMT9cXizDYQ&t=693s/>, a partir de 17:17. Acessado em 04 de março de 2022.

[9] “Viveu rápido, morreu jovem e deixou um belo cadáver”. Disponível em: <https://quoteinvestigator.com/2013/01/31/live-fast/>. Acessado em 04 de março de 2022.