Filme instigante de Samuel Fuller sobre um sombrio Estados Unidos lançado em meados dos anos 1960. Texto de Pablo Paz originalmente para a disciplina de Crítica e análise fílmica.
American way of life
No senso comum se diz que é possível descobrir muita coisa sobre uma mulher vendo aquilo que ela carrega em sua bolsa. Não descobrimos o conteúdo da valisa de Kelly (Constance Towers) mas pela forma que ela soca seu item de moda na cara dos seus adversários podemos inferir um lago de informações.
No primeiro plano de O beijo amargo (The naked kiss, Samuel Fuller, 1964) vemos um primeiro plano frontal de uma mulher (Kelly) determinada e brava nos (espectador/câmera) atacando com sua valise. Cortamos para um contra plano, onde um homem recebe a “bolsada” em sua cara e logo percebemos que adentramos em uma surra passional (não no sentido romântico), que estamos no clímax de uma cena e somos invasores. Mais importante, absorvemos que tais planos são subjetivos (POV), a estória que está prestes a se desenrolar é sob a perspectiva feminina. Mas quem é Kelly?
Na cena de abertura ela comunica indiretamente, através de suas ações e de sua aparência (sua cabeça raspada) que é “uma mulher forte, que cuida de si mesmo, não leva desaforo, que foi vítima no passado, mas não será mais e que é sobretudo honesta”, ela reitera a sua última característica com o passar da cena. Ao descobrirmos o motivo da briga, o dinheiro – já demonstrando o papel central que a riqueza possui neste longa –, com prazer ela repete com suas ações “eu pego somente aquilo que me é devido, aquilo que me foi prometido, nada mais, nada menos”. O cuidado que ela demonstra com sua peruca e maquiagem em frente ao espelho (motivo reincidente na trajetória de Kelly) transmite a personalidade de alguém preocupado com sua aparência, seja ela causado pelo ramo em que trabalha ou por preferências pessoais. Ao final da cena o espectador é largado com a sensação de que Kelly é uma mulher a qual, problemas estão sempre a espreita.
O forte jazz que acompanha a cena de abertura funciona em duas vertentes. Primeiramente imprime ao espectador sonoramente a “pancadaria” que testemunhamos, a agressão que o jazz propõe as convenções musicais se sincroniza com a agressão em tela. Percebemos que o jazz será substituído pela música clássica no restante do filme, colocando no lugar Beethoven, mais especificamente o Sonata ao luar (Primeiro movimento), o favorito de Grant (Michael Dante), isto é, o habitat do jazz é a metrópole, ao submundo asqueroso, sua presença não sendo bem-vinda no interior paradisíaco de Grantville. Em segundo lugar, é uma declaração de gênero, de pertencimento ao film noir, ou seja, a “[…] aqueles policiais dos anos 1940 de luz expressionista, narrados em off, com uma loira fatal e um detetive durão ou um trouxa, cheios de violência e erotismo” (MASCARELLO, 2006, p. 178). Esta definição lacônica e restrita, empregada sob a perspectiva de cinéfilos e entusiastas do gênero não é totalmente errônea. Podemos citar outros elementos narrativos que caracterizam o noir: o uso extensivo de flashbacks, a presença do crime, narrador masculino, atmosfera paranoica, tom pessimista. Como elementos estéticos:
[…] sobressaem a iluminação low-key (com profusão de sombras), o emprego de lentes grande-angulares (deformadoras da perspectiva) e o corte do big close-up para o plano geral em plongée (este, o enquadramento noir por excelência). E ainda a série de motivos iconográficos. como espelhos, janelas (o quadro dentro do quadro), escadas, relógios etc. - além, é claro, da ambientação na cidade à noite (noite americana, em geral), em ruas escuras e desertas. Num levantamento estatístico, possivelmente mais da metade dos noirs traria no título original menção a essa iconografia – night, cíty, street, dark, lonely, mirror, window – ou aos motivos temáticos – killing, kiss, death, panic, fear, cry etc (MASCARELLO, 2006, p. 181-182).
Não é só o jazz que interliga o longa de Fuller com o film noir, o título do filme tem papel ativo nesse quesito. The naked kiss, apropriadamente traduzido como O beijo amargo, o kiss é um dos temas recorrentes no gênero e seus derivados Killer’s kiss (Stanley Kubrick, 1955), Kiss me deadly (Robert Aldrich, 1955), Kiss kiss bang bang (Shane Black, 2005), O beijo da mulher aranha (Héctor Babenco, 1985), citando alguns.
Outro ponto de suma importância ao noir é a presença e representação feminina. O embate entre feminino e masculino são manifestações da desconfiança e do sentimento de ameaça dos homens quanto a ascensão da mão de trabalho das mulheres no pós-guerra. “A mulher no filme noir é dividida em três, ou seja, a femme fatale e a mulher cativa e a independente” (JUNIOR, 2016, p. 125).
A femme fatale é “a mulher de ações inescrupulosas […] exibida de forma erotizada, a mulher sensual de formas perfeitas e de uma beleza estonteante […] ela é tão ambiciosa e talentosa quanto o homem, trazendo uma inversão de valores e mudança de cultura” (JUNIOR, 2016, p. 124). Segundo Ann Kapplan (1995, p.22; apud JUNIOR, 2016, p. 126-127), a femme fatale literalmente transpira:
[…] sua sexualidade sedutora. O homem ao mesmo tempo a deseja e teme seu poder sobre ele. Tal sexualidade, ao desviar o homem do seu objeto, intervém de modo destrutivo sobre sua vida. Vista como maligna por sua sexualidade explícita, essa mulher precisa ser destruída (…) a femme fatale deve ser assassinada. O revólver ou a faca assumem o lugar do falo que deve, eliminando-a, dominá-la.
O arquetípico de mulher cativa é definido como “a representação da mulher passiva, doméstica, cujo objetivo era casar” (JUNIOR, 2016, p. 127):
[…] uma esposa ou namorada, associada com o lar, capaz de compreender o herói, que está em oposição à mulher. Ela pede muito pouco em troca e é geralmente passiva e estática (MATTOS, 2001, p.40 apud JUNIOR, 2016, p. 127).
“As mulheres independentes na trama do film noir são determinadas, inteligentes, astutas e se adaptam às situações em que são colocadas” (JUNIOR, 2016, p. 128). Griff (Anthony Eisley) tenta imputar a Kelly o rótulo de femme fatale, tenta expulsá-la de “sua” cidade, perceba que o Capitão transa com Kelly, a possui e ao mesmo tempo a teme, pelo medo dos problemas que ela possa trazer. Ao descobrir a pedofilia de Grant, ele tenta converter Kelly a mulher cativa, a que aceita sem questionar a toxidade de seu marido. Enquanto isso, Kelly se vê como uma mulher independente, que paga pelo seu próprio vestido de noiva, que não precisa de cafetão, uma self-made woman.
O mito do self-made man é americano por natureza, pois está diretamente ligado ao american dream. O self-made man é manifestado e desmascarado pelo verdadeiro mito que é a partir de Grant. Quando Kelly chama Grant de playboy internacional, a dona do quarto que aluga é veloz em negar tal rótulo, “seu nome é sinônimo de caridade”[1], o chama de trabalhador, implica que ele fez por merecer. Resumindo, faz questão de justificar os privilégios que ele possui tão somente em decorrência de seu tataravô ter fundado a cidade em que vive. Talvez possa se dizer que o tataravô tenha realmente sido um self-made man, o que faz sentido e dialoga com o cunho do termo, datado de 1842 por Henry Clay, ele utiliza Benjamin Franklin como exemplo de ouro de tal homem. Mas depois de múltiplas gerações beneficiadas pelas heranças familiares e de uma sociedade americana tão diferente da América que o termo foi primeiramente criado, já não é possível dizer o mesmo. A única razão para que Grant tenha fundado e financie o hospital para crianças e para que possa usar como isca e possa capturar as crianças que deseja.
Ao iniciar o filme em um centro urbano, violento, caótico e corrupto – uma corrupção a portas abertas, nítida –, Fuller contrapõe as diferenças visíveis entre metrópole e o subúrbio de Grantville. A corrupção na cidadezinha é silenciosa e a violência a portas fechadas.
O policial da cidade, teoricamente a bússola moral de Granville tem um esquema montado para recrutar as vendedoras de bombons (o eufemismo contribui para a noção de que não há desvio moral), essas vendedoras são recrutadas em Grantville e somente bem-vindas na cidade ao lado, pois na cidade dos Grant não se pode ter tamanha falta de moralidade. Kelly está completamente consciente disso, notemos o vestuário da primeira cena e o do restante do filme. Na cidade grande ela não teme vestir o uniforme de sua profissão, deixa as abertas o que faz, enquanto no interior, ela deve se vestir de maneira recatada, usar uma profissão de disfarce (vendedora de “champagne”). Concluímos que Grantville é uma cidade de ficções, de aparências, ao alugar um quarto de uma senhora Kelly pergunta, se por não ser uma estranha na cidade ela não precisaria de alguma refêrencia de seu caráter. A senhora a leva em frente ao espelho e aponta para seu belo rosto, o caráter é a sua beleza. Porém, Grantville é mais que uma pequena cidade, é uma alegoria ao american dream, Fuller denuncia a fragilidade desse sonho, da sua hipocrisia e da estranheza que é viver naquele mundo falso. A estranheza como em Veludo azul (David Lynch, 1986) é manifestado na atuação, nos diálogos, na decupagem e na paranoia transmitida ao espectador de que algo muito errado acontece nesse subúrbio paradisíaco ou talvez “há algo de podre no reino da Dinamarca”.
A violência também se difere, quando seu cafetão bêbado apanha, os cortes são rápidos, os golpes múltiplos e os plano subjetivos. Quando é a vez da cafetina Candy apanhar, a cena é filmada em um plano geral, ordinário, “meio sem graça”. Para que Grant morra basta apenas um golpe, sem firula, destoando dos múltiplos na cena de abertura.
Referências bibliográficas:
MASCARELLO, Fernando. Film noir. In: MASCARELLO, Fernando. (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006, p. 177-188.
JUNIOR, Euclides Alves Vital. A femme fatale, do noir ao Roger Rabbit. South American Development Society Journal, v.2, n.4, p. 118-133, 2016.
[1] No original: “his very name is a synonym for charity”.