Afinal de contas, o que quer dizer Barbie? Filme feminista ou ode ao consumo? Descubra aqui, três discentes refletem sobre essa superprodução dirigida por Greta Gerwig.
Você pode ser o que quiser… mas depende
O mercado cinematográfico está em constante transformação, e desde o sucesso de narrativas fantásticas como Guerra nas estrelas e Jornada nas estrelas, ambas lançadas na década de 1970, as histórias de “faz de conta” passaram a arrastar milhares de espectadores aos cinemas. Nos últimos anos, isso ficou evidente através do universo – agora multiverso – expandido dos super-heróis da Marvel Comics que, junto a Avatar 1 e 2 de James Cameron, lideram o ranking de filmes com maior número de arrecadação em bilheteria. Em 2023, foi a vez do reino da imaginação e diversão transformar o mundo – e as telas do cinema – em uma grande bolha cor-de-rosa. Assim como um chiclete, Barbie, dirigido por Greta Gerwig, se espalhou na boca do povo, através de artifícios fundamentados na nostalgia e na escolha de um público-alvo que há tempos parecia estar esquecido em um limbo: as mulheres.
Desde sua estreia no final dos anos 50, a boneca Barbie tem sido uma presença constante nas vidas de muitas gerações, e o filme tenta honrar esse legado de maneira poética, sensível, e com humor. A narrativa gira em torno da icônica boneca, que ganha vida em uma aventura repleta de cores vibrantes e cenários deslumbrantes. A equipe do filme conseguiu trazer a essência da Barbie à vida de forma excepcional, mantendo-se fiel à sua natureza fantástica, otimista e encorajadora.
Um dos aspectos mais notáveis do filme é a maneira como ele aborda o empoderamento feminino de maneira direta, o que causou certa revolta em alguns espectadores que não compreenderam ou não concordam com a mensagem transmitida. A protagonista, interpretada por Margot Robbie, é retratada como uma figura forte, corajosa e determinada, que está disposta a enfrentar desafios aparentemente insuperáveis para alcançar seus objetivos. Além disso, as outras Barbies compartilham entre si uma relação de apoio e admiração que reforça suas capacidades, habilidades e, principalmente, sua independência. Isso nos leva aos antagonistas da história, os Kens, e ao grande vilão – o patriarcado.
O “par” da “Barbie estereotipada”, se mostra em uma constante dependência emocional pela boneca – fato apontado inclusive pela narração em off. Ryan Gosling traz para Ken a imagem do homem-acessório, que fora inicialmente a função do boneco da Mattel. Essa relação entre as personagens pode ser interpretada por alguns como uma analogia às relações heteroafetivas do mundo real, em que o homem é o centro das atenções, o líder, e a inspiração, enquanto a mulher é apenas sua extensão, ou ainda vista como sua propriedade; o inverso da estrutura social da Barbielândia, onde as Barbies são tudo, e os Kens são apenas… Ken. Quando postos no mundo real, Barbie e Ken se deparam com as disparidades de tratamento e expectativas de vida e carreira de acordo com seus pressupostos gêneros biológicos – fato inclusive posto à discussão quando a boneca ressalta que nenhum dos dois possui genitália. O filme enfatiza os efeitos dessa organização social sobre todos nela inseridos. A pressão, a disputa e a falsa codependência colocam os Kens contra suas companheiras e contra si mesmos. Em sua redenção, Ken compreende a importância de separar a individualidade de cada um e encontrar aquilo que o faz único: é preciso enxergar Barbie e Ken como personagens distintos que apesar de conviverem juntos, não dependem mais um do outro.
O roteiro, assinado pela própria Greta, em conjunto com Noah Baumbach, traz personagens que exploram a diversidade étnica, cultural e representativa no geral, celebrando e apreciando a inclusão de todos. O filme leva os espectadores a uma jornada mágica e inspiradora, com uma temática extremamente pertinente, e que ressoa para fora das telas, capturando os corações de todos aqueles que algum dia tiveram a boneca como sua parceira nas brincadeiras – seja sua versão oficial ou as cópias reproduzidas de baixo custo. Vale aqui ressaltar os figurinos e os cenários propositalmente artificiais da Barbielândia: uma explosão de cores e detalhes deslumbrantes, que apenas a imaginação seria capaz de compor, afinal “life in plastic is fantastic”.
Para além disso, a mensagem subjacente de que as mulheres podem ser qualquer coisa que desejarem reflete o próprio slogan da boneca, mas esbarra novamente na questão dos efeitos do patriarcado na sociedade. Independente da verdadeira razão pela qual fora criada, Barbie se tornou um simulacro de todas as possibilidades para as meninas, no entanto, ao ser transformada em mercadoria, ela se mantém atada aos caprichos corporativos, liderados por uma visão capitalista e voyeurista, que encaixa a figura feminina em caixas, metafóricas e literais. Exemplos disso são as tentativas de lucrar sobre qualquer premissa, representadas pelas bonecas descontinuadas, como Midge (a amiga grávida da Barbie), Growing up Skipper (a versão adolescente que crescia em altura e tamanho dos seios), ou ainda o Ken Sugar Daddy e “Brinco mágico”. Greta trata essas empreitadas da Mattel com recursos humorísticos, afinal a própria companhia é uma das responsáveis pela produção do filme, porém a alfinetada se torna óbvia aos olhos mais atentos.
Outro ponto a ser observado são as diversas referências culturais e de acontecimentos que fizeram parte da infância de milhares, desde a sequência inicial sobre a origem das bonecas, com analogia à icônica cena do filme 2001: uma odisséia no espaço (1968, Stanley Kubrick), ao comentário do personagem de Michael Cera sobre o grupo musical 'N Sync. Segundo ele, a famosa boy band dos anos 1990 seria composta por bonecos Alan que saíram de Barbielândia para o mundo real, uma clara alusão ao clipe It’s gonna be me (2000, Wayne Isham). A referência ao filme de Kubrick inclusive retorna, através da trilha sonora, no momento em que Ken se depara com a realidade da organização social do mundo real, dominado por homens.
Por fim, pode-se dizer que Barbie traz em seu discurso tudo aquilo que, apesar de estar claro para muitos, ainda precisa ser reiterado para que essas vozes sejam ouvidas e compreendidas. O filme celebra a importância da amizade, do amor próprio e da autodescoberta. Para as mulheres, ele ainda se comunica como um sinal de visibilidade que outros filmes, voltados para este público, não o fazem ou nem mesmo têm essa pretensão. Apesar da falha da indústria cinematográfica em compreender os resultados da bilheteria como sinal para investir em temáticas pertinentes a este público – vide o anúncio da Mattel sobre um filme inspirado no jogo Uno –, Barbie cumpre seu papel e sua premissa: ela não tem um fim, ou um destino único e predeterminado; assim como as mulheres, ela não precisa ser ater a apenas um papel. Ela pode ser Ken quem ela quiser.