Nessa animação, Miyazaki conta a história de um piloto que é transformado em uma espécie de porco humano e tenta salvar vítimas de piratas. Adriel Alves analisa o filme.
Um porco tem que voar
Dirigido pelo veterano da animação Hayao Miyazaki, Porco Rosso (1992) é um dos trabalhos mais interessantes e inusitados do diretor, capaz tanto de capturar o espectador médio com sua energia e entusiasmo típicos da obra o autor, quanto de impressionar aqueles já habituados às bases narrativas e temáticas de seus filmes com abordagens e elementos singulares desta obra.
Porco Rosso conta a história de Marco, um porco aviador que vive sozinho em uma ilha no mar Adriático, onde é conhecido por ser um herói que combate piratas. Logo de início, a direção estabelece um tom heroico e descontraído com uma sequência de perseguição entre o mocinho e os vilões que enche a tela de deslumbre e agitação e que transborda na empolgação das crianças feitas de reféns pelos piratas, que se divertem com o papel que exercem em meio aquela luta. As notas de extroversão e espontaneidade desse começo se estendem a todo o primeiro ato e reafirmam a modulação leve e divertida na forma como as disputas entre os piratas e o porco acontecem no mar Adriático, isto é, as ações dos bandidos e suas batalhas com Marco não tem consequências, e no fim todos vão ao mesmo bar, onde é proibido combates.
Durante a sequência no bar, o filme tira um momento para nos mostrar um pouco mais de quem Marco é, e faz isso o colocando em contato com dois novos personagens, Curtis e Gina. Curtis é um aviador americano contratado pelos piratas para derrotar Marco. Ele é obcecado por honra e heroísmo, coisas que Marco tem, mas pelas quais não demonstra tanto interesse. Gina é a personificação da figura da mulher imaculada, idealizada, e única amiga de Marco. Ela tem uma visão pessimista sobre aviadores, visto que os três maridos que teve morreram em batalhas de aviões. Esse desencanto com a aviação é compartilhado por Marco, quando ele afirma “os bons estão todos mortos”. Esse momento coloca o protagonista em contraste com a sequência inicial, uma vez que a figura heroica que projetamos no porco após a primeira sequência é quebrada pela melancolia de sua visão de mundo, ao mesmo tempo que nos intriga sobre quem ele realmente é.
A discordância entre o protagonista e o mar Adriático é simbolizada pelo fato de seu avião estar com dificuldades para levantar voo e, após uma ameaça dos piratas, ele decidir partir em direção a Milão, onde pode consertar o veículo. Porém, no caminho, ele é abatido por Curtis, mas sobrevive e, com dificuldade, chega até a Itália, onde novamente conhecemos mais sobre quem ele é e, principalmente, conhecemos mais sobre o mundo em que os personagens estão inseridos.
É notável a preocupação de Miyazaki em delimitar o filme temporal e geograficamente entre as duas guerras mundiais, durante a ascensão fascista na Itália, mais especificamente no fim dos anos 20. Uma preocupação que se repetiu pouquíssimas vezes em toda a sua filmografia. Além disso, nesse segundo momento do filme, há a presença de elementos realistas estranhos ao cinema do autor, como questões financeiras, a tecnicidade envolvida no conserto do avião e a presença da instituição policial como antagonista. Apesar de incomuns, todos esses elementos são utilizados de maneira criativa e orgânica e se relacionam com o personagem de alguma forma.
Para consertar seu avião, Marco visita seu velho mecânico, Piccolo, e logo que eles conversam sobre os reparos, é estabelecida a condição de vulnerabilidade do protagonista nesse novo cenário, pois enquanto no início do filme o vimos cobrar o valor que quisesse para resgatar as crianças, agora seu dinheiro não é o bastante e ele ficará endividado.
Além disso, a crise financeira no país está ocupando Piccolo com outras coisas e quem ficará responsável pelos reparos será sua neta, Fio. Ao descobrir isso, Marco manifesta um comportamento machista, subestimando a capacidade da menina. Essa situação não só expõe um defeito do personagem, como também pode ser associada a sua relação com a já mencionada Gina. Enquanto, no mar Adriático, a única mulher com quem Marco se relacionava era a figura feminina idealizada pelos aviadores, e, portanto, desumanizada – visto que o porco não se importou em deixá-la angustiada com sua possível morte após o confronto com Curtis –; em Milão, ele tem de lidar com uma mulher mundana, empolgada com seu trabalho e que confronta Marco a fazer o que tem que fazer. Além do mais, diferente do ambiente de batalhas majoritariamente masculino do mar Adriático, a mão de obra da oficina de Piccolo é inteiramente constituída por mulheres de todas as idades que exercem todos os tipos de função. Sua estadia na oficina força Marco a conviver com pessoas que estão longe do mundo de seu mar de heróis e vilões, e que lutam para sobreviver no mundo real, em meio à crise e à ascensão fascista no país.
Nesse momento, o que resta ao personagem é aguardar que seu avião seja reparado. Então o filme assume uma estrutura episódica que brinca com o fato de Marco não se encaixar na realidade de Milão, como na genial cena em que ele vai ao cinema assistir a um filme sobre aviões e o vilão do filme é um porco, o que contrasta com a visão heroica com a qual ele, como porco, se acostumou a ser enxergado no litoral. A cena ainda introduz a importância da polícia fascista nessa história, quando um antigo amigo de Marco se senta ao seu lado e, pelo diálogo, descobrimos que ambos lutaram na primeira guerra mundial, porém o porco desertou e agora o governo o considera um traidor e o está perseguindo. Isso adiciona uma camada importante na relação do porco com o mundo, porque não só ele está vulnerável financeiramente e não gosta da agência que as mulheres tem ali, como ele também está fugindo desse mundo e sua vida de heroísmo preto e branco no mar Adriático é parte dessa fuga.
A perseguição da polícia começa a colocar a vida de Marco em risco e ele tem que partir antes de seu avião ser submetido a testes. A condição para que possa fazer isso é que o porco leve Fio com ele, já que só ela pode fazer manutenções no veículo, caso isso seja necessário. Com muita dificuldade, Marco e Fio decolam e retornam ao mar Adriático.
Porém, agora com Fio ao seu lado, sendo uma parte que ele carrega consigo do mundo que ele rejeita, o filme reforma a noção fantasiosa que criou do litoral e parte em busca de conciliar a realidade e fantasia que permeiam a vida do protagonista. Essa conciliação vem quando, ao chegar na ilha onde o porco vive, eles são emboscados pelos piratas, mas Fio consegue reverter a situação apelando para um discurso moral e apostando com Curtis que, caso vencesse um novo duelo contra Marco, ela se casaria com ele. O risco que a personagem correu para salvar a vida dos dois os aproxima e é então que, ao contar uma história para Fio dormir, Marco se abre sobre a experiência da guerra. Ele narra brevemente o que chama de “o último verão da guerra”, no qual, após um confronto, só ele retornou vivo de seu time, tendo uma visão onírica dos aviões amigos e inimigos abatidos voando todos numa mesma direção, formando um imenso rastro no céu. Esse é o ponto alto do filme, pois diz, de forma poética e não expositiva, aquilo que o personagem vinha demonstrando o longa inteiro com suas ações. Marco não pertence ao mar Adriático, Marco não pertence a Milão. Sua visão após a batalha em que voltou vivo e sozinho revelou a ele o ingênuo fato de que não há heróis e vilões e, quando abatidos, todos os aviões voam na mesma direção: eles caem. Mas, aqui, a sensibilidade artística de Miyazaki os fez voar todos juntos em direção ao desconhecido. Esse entendimento foi demais para o porco, que preferiu abandonar tudo e fugir para um mundo preto e branco, onde guerra, armas, tiros, sequestros, não tivessem consequências.
A camada trágica e poética que é impressa no personagem nesse momento reflete o estado de profunda reflexão e melancolia que o próprio Miyazaki se encontrava na época. A paixão pelo céu, pelo vento e por aviões não é novidade na carreira do diretor, que sempre explorou esses elementos com entusiasmo em seus filmes. Entretanto, Porco Rosso se destaca entre eles devido ao contexto histórico em que foi concebido. Originalmente, o filme foi encomendado pela Japan Airlines como um curta metragem sobre aviões para ser exibido durante os voos da empresa. Porém, em 1991, com a eclosão da sangrenta guerra da Iugoslávia, Miyazaki se viu assombrado pelo conflito simbólico entre os aviões encantadores que estava representando em seu filme, e os reais que bombardeavam cidades nos Bálcãs. Essa contradição lançou uma sombra sobre a produção, que precisou ser reformulada para um longa-metragem, no qual o autor teria espaço para lidar com seu conflito interno entre o real e o fantástico e poderia conciliar os dois lados, como ele efetivamente fez ao representar toda a dor da guerra num imensurável feixe de aviões voando na mesma direção, ocupando o mesmo céu.
Ao final, só o que resta é a solução do conflito entre Curtis e Marco, para o qual direção usa de todos os elementos disponíveis para criar o embate mais espalhafatoso e divertido ao seu alcance. É um dia ensolarado, há uma imensa plateia que vibra a cada manobra. Os tiros acertam as arquibancadas sem ferir ninguém, as pessoas apostam toneladas de dinheiro no seu favorito e a imprensa está registrando tudo ao vivo. O céu se torna palco de um épico espetáculo visual que tira sorrisos de todos ao seu redor e que termina da maneira mais juvenil possível, com ambos os pilotos abandonando seus hidroplanos e decidindo o vencedor numa troca de socos. As apostas aumentam, alguém arruma uma panela para ser usada de gongo, até um juiz entra para contar os rounds. Tudo feito de forma mais honesta que um contador de histórias que encantam como Miyazaki poderia fazer. Marco ganha a luta, e Gina vem avisar que a força aérea está chegando. Todos deixam o local, e Marco entrega Fio para Gina e pede que ela “a devolva para o mundo real”. De volta para esse mundo real que sentia a chegada do fascismo, o mesmo em que a guerra da Iugoslávia acontecia. Mas, ainda assim, todos se divertiram com aquela luta fantástica entre aviões.