Fahrenheit 451 (1966)

Pablo Borges Paz e Antonio Cuyabano examinam esta ficção-científica inglesa dirigida por François Truffaut a partir da obra literária de Ray Bradbury.

Críticos:

Pablo Paz
Antonio Celso

Fahrenheit 451: Uma grande homage a Hithcock


Créditos Iniciais e studio system

A admiração de Truffaut pelo diretor estadunidense Alfred Hitchcock é notória indo desde de sua extensa entrevista feita pelo francês e compilada no livro Hitchcock/Truffaut, a qual foi publicado em 1966, mesmo ano de lançamento do longa-metragem. Neste livro que é uma exaustiva entrevista entre dois diretores, que conversam de modo despretensioso sobre o trabalho do diretor, seu papel e suas intenções. Hitchcock foi um diretor que desenvolveu seu trabalho dentro da Era Dourada de Hollywood, em um método de distribuição e produção controlado por poucas empresas cinematográficas, tal método tem a denominação de studio system-de modo geral, os cineastas que produziam para tais empresas estavam sobre longos contratos, não tinham direito ao corte final de seus filmes e os diretores não eram os roteiristas de seus longas. Hithcock se destaca entre esses diretores, em especial pela sua espetacular mise em scène, uso de cores, trilha sonora (destaque para as colaborações entre o diretor e Bernard Herrmann). Todas essas características estão presentes no longa de Truffaut, um filme a qual a admiração estética por Hitchcock é explicita, indo desde das cores Technicolor, ao casting de atrizes loiras-sendo um fenótipo de preferência de Hitchcock- é presente tambem a atenção a direção de arte e o aspecto mais chamativo do filme: a trilha sonora de Bernard Herrmann. Com isso, o filme presta referência a todas as demandas de um hitchcockiano. Estes aspectos de retroalimentação cinematográfica e declaração de amor ao cinema e seus cineastas, não são nenhuma surpresa para a estética de Truffaut- um cinéfilo assumido- indo desde de seus dias como critico da revista Cahiers Du Cinéma até em 1973 em seu filme A Noite Americana. Em uma das cenas o diretor (interpretado por Truffaut) abre uma caixa de livros que ele havia pedido, assim vemos em um close, livros sobre diretores como: Jean-Luc Godard, Orson Welles, Ingmar Bergman, Robert Bresson, Luis Buñuel, Roberto Rossellini e Carl Theodor Dreymer. No filme, talvez uma resposta de sua experiência fora da França em produzir Fahrenheit, ele discute o impacto do cinema nas vidas, seria ele mais importante que a vida. Mas mais importante, ele dialoga a superficialidade dos filmes, em especial, o método americano de studio system, começando pelo titulo, uma técnica de filmagem que faz com que o dia pareça noite, deste modo enganando o espectador.

Os créditos iniciais chamam a atenção por serem narrados em voice over, algo extremamente incomum. Esta escolha autoral, dialoga diretamente com a narrativa do filme, já que os indivíduos daquele mundo decoram livros na íntegra, para assim mantê-los vivo e transmiti-los as gerações futuras. Paralelamente, Alexandre Astruc, contemporâneo de Truffaut, escreve em seu texto Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo publicado em 1948, sobre a capacidade de autores cinematográficos que possuem a capacidade de filmar com a camera do mesmo modo a qual um escritor consegue escrever com sua caneta palavras. O cinema “após ter sido sucessivamente uma atração de feiras, uma diversão” se torna “uma linguagem, ou seja, uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir seu pensamento, por mais que este seja abstrato, ou traduzir suas obsessões do mesmo modo como hoje se faz com ensaio ou o romance”. No seu texto, Astruc atribui isso a capacidade de mostrar seu autorismo e como exemplificação utiliza cineastas como: Orson Welles e Jean Renoir.

Truffaut em seu texto Une Certaine Tendance du Cinéma Français(1958) tenta “definir uma tendência do cinema francês- tendência conhecida como “realismo psicológico”- esboçar seus limites”. Ele afirma ter entre dez ou doze filmes que merecem a atenção dos criticos e cinéfilos, estes filmes sendo denominados “tradição de qualidade” (filmes derivados de clássicos da literatura francesa, roteirizado por um grupo de profissionais). Inicialmente, diz ele o cinema francês se diferenciava do cinema americano, ele chama esses filmes de “realismo poético” e de esterem mortos no cinema de 1950. E quem esta no centro desta tendência? “roteiristas, aquele que, precisamente, estão na origem do “realismo psicológico” e “tradição de qualidade”. Ele categoriza esses filmes como enfadonhos, acadêmicos e de roteirista. É aqui que ele clama por um novo cinema marcado pelo estilo de seus diretores, expondo sua politica de autores e colocando como figura central o diretor. Mais tarde Truffaut se contradiz adaptando livros em filmes como: Uma mulher para dois(1962), Fahrenheit(1966) e Duas Inglesas e o Amor(1971).

Recordação e Alienação

Recordar é viver. Não é mesmo? Mas o que é preciso se ter para exercitar o hábito da recordação? A leitura? O cinema? “Um país sem cinema é um país sem cultura”

A leitura de livros na sociedade retratada é atribuída ao fato deles deixarem os indivíduos tristes e afinal quem quer isso? Para eles é mais conveniente esquecer e ignorar tais pensamentos e fatos-a ignorância é uma benção-em uma das cenas o protagonista lê um trecho de um determinado livro para as convidadas de sua esposa, uma delas cai em lágrimas, o exercício de provocação incitado pelo texto é incomum a ela, aqueles sentimentos e pensamentos guardado saem a tona. O que existe é a alienação diária e também a aceitação das verdades (mas o que é verdade senão um determinado ponto de vista) daquele mundo. A recordação é tão inexistente que uma personagem questiona se no passado as casas pegavam fogo, se os bombeiros tinham outra função a não ser incendiar livros, para eles a navalha é uma nova tecnologia.

Um país que não se recorda, que não pratica esse exercício de confrontação é um país sem cultura. Um país a qual por exemplo o incêndio do Museu Nacional é normalizado, a queima do conhecimento é aceitável, um chefe de governo dizer que Nazismo é de esquerda é aceitável, dizer que a floresta Amazônica não está queimando por que é úmida é normal. Em Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano,2019) a figura do Museu esta periférico narrativamente, mas ele sempre está lá visualmente, os forasteiros que chegam na pequena cidade se recusam a adentrá-lo, se recusam a recordar, a desbravar e por este motivo permanecem em sua ignorância. No confronto com os estrangeiros, a maior parte do combate acontece no Museu, as armas usadas pelo povo de Bacurau vem de lá, a forma de execução está lá, representada em foto, em memória. Em Fahrenheit a “solução” para os problemas vem na forma de decorar livros na íntegra, recordar e transmitir aquele conhecimento para que outros também possam recordar é a solução.