Um restaurante de classe média em São Paulo é invadido, no fim do expediente, por dois ladrões armados. O dono do estabelecimento, o cozinheiro, uma garçonete e três clientes são rendidos. Entre a cruz e a espada, Inácio - o homem pacato, o chefe amistoso e cordial – precisa agir para defender seu restaurante e seus clientes dos assaltantes.
A máscara animalesca do "homem cordial"
A estreia de Gabriela Amaral Almeida em longa metragem com O Animal Cordial (2018) é ousada e corajosa ao embarcar em uma proposta de mesclar os gêneros de suspense, terror e flertar com outros subgêneros, a exemplo do canibalismo. Ela conta com a estrela de Murilo Benício para interpretar Inácio, um dono de restaurante de classe média egocêntrico que abusa das dinâmicas trabalhistas para se reafirmar como uma figura poderosa e imponente. Ao seu lado, Luciana Paes mostra-se versátil, e, novamente, bem dirigida por Almeida - A mão que afaga (2012), último curta da diretora -, em seu papel como Sara, a garçonete promovida à figura de confiança do chefe.
O encerramento de mais uma noite de expediente deixa de ser comum quando o patrão antecipa aos funcionários a visita em breve de uma revista de crítica gastronômica. As tensões começam a intensificar-se a partir da extensão do horário de serviço com a chegada de outros clientes, Verônica (Camila Morgado) e Bruno (Jiddu Pinheiro), sobrecarregando o chef de cozinha Djair (Irandhir Santos). Visto que, por conflitos no trabalho, Inácio demite os auxiliares do responsável pela assinatura do cardápio exótico (com um menu constituído por carnes de coelho e javali, por exemplo). A interrupção do clima constrangedor se dá pela chegada de dois assaltantes no restaurante e o que parece ser o ápice da construção climática na narrativa, é contornado pela diretora, que reserva para mais de uma hora seguinte, a revelação da verdadeira face do animal cordial.
Não é ao acaso que o título do filme alude ao conceito conhecido pela sociologia como "homem cordial". Cunhado por Sérgio Buarque de Holanda, o termo é reconhecido no livro "Raízes do Brasil" (1936) por identificar como algo anterior ao ser brasileiro, o impulso essencial por lidar com a relação com o outro ser por meio do coração - significado do radical de origem em latim de "cordial" (cordis). Isso representa a dualidade do indivíduo ao manter as relações interpessoais, de modo a observar que este ao ser dominado pelo coração seria afável e polido na mesma medida que seria impulsivo e violento. "[a polidez] Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções."1 (BUARQUE, p. 147). Por não suportar a individualidade, ele procura expandir o seu ser social utilizando das palavras para criar uma aproximação de aparência afetiva.
O ser e pertencer, são necessidades atribuídas ao "homem cordial" e muito evidenciadas no filme pelas personagens de maneiras distintas. Sara almejava se sentir vista e desejada pelo chefe e quando isso concretiza, ela abdica de sua moralidade e senso comum a fim de permanecer na posição de poder que a aliança representou na "cadeia alimentar" daquele local de trabalho. Ao ser invisibilizada por muito tempo, o novo status promove a ânsia de realizar a antropofagia social de um outro ser, o qual exercera este status que ela busca permanecer, consumado pelo ato de "brincar" com o corpo desfalecido e ao usar do batom e dos brincos de Verônica - quem possuía antipatia com a garçonete devido ao tratamento grosseiro e insensível.
Para Inácio, a cordialidade se expressa através da selvageria do cidadão de bem, ele se conecta a Amadeu (Ernani Moraes), um policial aposentado, que na iminência de sua morte, revela sua proximidade com o protagonista no instinto bestial de matar e punir. Almeida desenvolve a personagem de Benício aos moldes de Psicopata Americano (2000), uma figura narcisista que lida com sua própria imagem de maneira ufanista e busca a qualquer custo estar sob controle e comando da selvageria e da barbaridade.
O roteiro original é impiedoso ao esclarecer que mesmo uma personagem tão esclarecida como Djair, que expõe o tratamento excludente por ser um homem negro e gay na cena em que ele tem o cabelo cortado, está fadada a reproduzir os comportamentos de polidez induzida. No livro de 1936, Holanda argumenta que a linguagem é um meio para reprodução da civilidade superficial, como devido ao uso do sufixo "-inho" nas palavras usadas para tratamento, a fim de aproximar o que é distante. E, o cozinheiro se refere aos invasores de maneira recorrente como "coisinho", sendo pela última vez, corrigido e relembrado da pessoalidade dos indivíduos por Magno (Humberto Carrão).
De acordo com Holanda, o "homem cordial" possui amarras na ruralidade, portanto, com a urbanização do país, as relações deixariam de ser conduzidas primariamente dessa forma. Contudo, a diretora paulistana adiciona uma camada na discussão e argumenta que esse comportamento foi adaptado para a selva de pedra. As personagens revelam suas verdadeiras faces primitivas pela vontade de Sara de fugir da situação para um lugar em que não iriam precisar de roupa; ao alimentar-se de maneira animalesca, reproduzindo sons e expressões não naturais; quando Sara e Inácio concretizam o ato carnal de forma totalmente bestializada, cobertos de sangue; e quando a morte é banalizada pelo dono do restaurante a ponto de desejar por mais.
O primeiro longa de Gabriela Amaral Almeida é bem-sucedido ao explorar um cinema de gênero, o filme possui uma progressão instigante e atuações bem direcionadas. A fotografia de Bárbara Alvarez exerce um papel discreto, mas eficiente, e vai na contramão de filmes contemporâneos que embarcam no suspense por meio da iluminação RGB como principal recurso para construção de tensão e de personagem. A direção consegue manter o público instigado com o comportamento animalesco, tornando o espectador cúmplice do que assiste e angustiado para que as máscaras se revelem.