Medusa (2021)

Mariana é uma jovem que se força ao máximo manter a aparência de que é uma mulher perfeita. Para resistir à tentação, ela e suas amigas se esforçarão ao máximo e farão tudo em seu alcance para controlar tudo e todas à sua volta. Porém, a vontade de gritar é cada vez mais forte.​

Críticos:

Hadrian Ezekiel

Medusa: Um Grito pela Liberdade Em Meio a Ascensão do Neopentecostalismo no Brasil


Anita Rocha da Silveira, diretora e roteirista que estreou em longas-metragens com MATE-ME Por Favor (2015), retoma em Medusa (2021) a mesma pretensão de seu primeiro longa-metragem: o uso do terror como um espectro para criticar, de forma incisiva, alguma falha ou nuance da contemporaneidade. Em Mate-me Por Favor, a violência cotidiana do Brasil é usada para narrar uma situação de suspense, uma vez que diversas pessoas — a maioria, mulheres — estão sendo mortas por um psicopata. Em Medusa, o tema da violência é revisitado, mas dessa vez usa-se a violência do extremismo religioso para se criar um ambiente distópico. O filme evidencia a ascensão das denominações neopentecostais com grandes projetos de poder, que usam desse radicalismo para criar pânico na sociedade e crescer através da manipulação de massas. Sendo assim, Medusa é, antes de tudo, uma reflexão acerca do momento vivenciado pelo brasileiro a partir da década de 1990, mas que se acentuou drasticamente na década de 2010.

Na distopia — não tão distante da realidade —, a protagonista Mariana vive em uma espécie de casa ou pensionato para jovens cristãs, um local onde mulheres como ela são enviadas para ter convívio religioso e frequentar locais considerados adequados. Entre as várias pessoas que vivem na residência, a protagonista tem uma amizade mais profunda com Michele, a vaidosa líder do grupo juvenil feminino da igreja — as “Preciosas” —, e ambas nutrem uma obsessão por uma lenda urbana envolvendo Melissa, uma mulher descrita como “a mais devassa que já existiu naquela cidade” e que por isso foi perseguida por uma mulher mascarada que a agrediu e a queimou viva, deixando-a completamente desfigurada. A situação faz analogia ao mito de Medusa, onde ela teria sido punida por Atena devido a sua impureza moral e, por isso, fadada a ser uma criatura horrorosa. 

A partir dessa lenda surge o lado obscuro do grupo das “Preciosas”: assim como a mulher desconhecida fez com Melissa, elas, tendo dentro de si a convicção de que foram escolhidas por Cristo para espalhar a palavra santa e a devoção, se unem para perseguir “mulheres do mundo” e, mascaradas, as agridem e gravam a violência, para em seguida postar nas redes sociais, com o objetivo de traumatizar as vítimas e levá-las, através do medo, ao que é crido pelo grupo como molde do ideal feminino. Em paralelo à patrulha feminina, há uma outra chamada “Vigilantes de Sião”, que é formada apenas por homens e tem o mesmo objetivo: desmoralizar os cidadãos que não são adeptos aos ideais deles. É justamente neste ponto que se encaixa a primeira etapa da crítica proposta pela diretora: como certas religiões — uma minoria barulhenta delas — querem impor seus valores morais sobre a população. Essa crítica é enfatizada através de uma pregação do pastor, que afirma: “Durante muito tempo a igreja esteve afastada das decisões da nação. Quanto tempo a gente perdeu imaginando que não era coisa da igreja definir o futuro do país?”, mostrando com clareza a existência de um projeto de poder ideal comandado por eles, onde a igreja não deveria estar reduzida a quatro paredes.

Em determinado momento, Mariana acaba agredida ao perseguir uma pecadora, ganhando uma cicatriz no rosto. Devido ao contexto religioso em que, além da beleza espiritual, a beleza corporal também é importante, ao ter cicatrizes ela estaria se tornando menos mulher por estar “feia”, exibindo, mais uma vez, a subversão dos preceitos da fé em prol de um projeto de poder, pois a beleza corporal, presente, por exemplo, em vídeos divulgados na internet, se faz importante ao induzir o internauta e possível fiel a crer que estar ali, em meio àquele povo, o torna mais aprazível. 

Este fato a faz ficar ainda mais determinada em sua busca e a leva a trabalhar na casa de repouso onde ela acredita estar Melissa. O local, assim como boa parte das cenas da produção, tem uma iluminação esverdeada, uma escolha artística da diretora e da equipe envolvida que, além de fazer referência às cobras do cabelo de Medusa, cria uma atmosfera densa e perturbadora para o espectador. Aliás, o aspecto de abandono do asilo traz uma reflexão acerca das preocupações reais das religiões, que clamam pelo bem do ser humano, mas se importam mais com o modo de vida individual e alheio do que com quem realmente precisa de ajuda, invertendo a lógica pregada por Jesus. Além disso, fica claro que Mariana queria usar dessa curiosidade para se aproximar mais dos preceitos da religião, mas o tiro saiu pela culatra. O conhecimento de uma realidade diferente daquela que estava habituada a faz perceber a problemática de seu contexto, uma vez que ela também deixa ser levada pelos desejos carnais ao se relacionar com um dos enfermeiros — um homem sem religião.

Ao finalmente encontrar Melissa, nada sai como o esperado e, em mais uma alusão ao mito de Medusa, a desfigurada causa a petrificação de Mariana, que desmaia e ganha mais uma cicatriz, perdendo a beleza à medida que se torna “impura”, recebendo assim o mesmo que Atena destinou ao ser mitológico. A situação a faz acreditar ter sido possuída pelo espírito da mulher e sendo a religião o único lugar que pode buscar ajuda, Mariana acaba sendo desiludida, numa cena em que é evidenciado a forma de como o pastor — e a religião — não está se importando com os fiéis, mas sim com os próprios projetos pessoais. Trazendo para o mundo real, a situação faz um paralelo com os mercadores da fé, uma classe de religiosos que usam de seus poderes apenas para enriquecer financeiramente e politicamente, se aproveitando da ingenuidade e da fé das pessoas para ir de um ponto ao outro — nos últimos anos, a dominação da república. O fiel torna-se papel a ser usado uma vez para logo ser descartado.

A partir da situação envolvendo Mariana, Michele deseja ver Melissa. Todavia, assim como a amiga, ela acaba indo no caminho oposto, sendo levada em direção aos próprios desejos reprimidos pela vivência que violenta o livre arbítrio e o senso de existência individual. Através da lenda de Melissa — e, consequentemente, de Medusa —, ambas se libertam da própria prisão por meio do que aprisionou Melissa, como se agora o espectro da agredida vingasse o que fora feito. Um dos últimos elos da corrente ideológica é quebrado quando Mariana, assumindo definitivamente o papel de Melissa, faz Michele desmaiar com um grito estridente, desmaiando em seguida. Ambas acordam desnorteadas e a agora livre Michele, beija Mariana, regurgitando outro ponto de sua existência que era reprimido e acobertado da sociedade através da máscara de moça recatada. Sendo assim, a máscara não somente representa no filme uma forma esconder o rosto das autoridades quando se comete um crime, mas também um retrato de que aquelas mulheres não vivem o seu eu verdadeiro, e sim uma versão alternativa criada para se encaixar num ideal que as permita a sensação de pertencimento a algum lugar numa sociedade que as repulsa. Isto é fixado ainda mais fortemente quando, logo após o beijo, as duas vão a uma festa que acontece ali próximo e Michele é a única a dançar sem máscara alguma, sendo essa a sua real liberdade. Ela não precisa mais se reprimir e agora se encaixa onde ela realmente pertence.

A sucessão de acontecimentos culmina numa ruptura nas patrulhas da moral, cujos membros, tomados pelo medo das festas e dos costumes mundanos que se espalham pela cidade, passam a não se entender, sem encontrar um ponto de consenso para lutar contra a raiz do que elas veem como o mal. Todos estão perdidos na corrupção dos valores em que construíram a própria existência. O comunismo é citado por uma personagem como uma degeneração moral, e, assim como o fantasma desse molde político que assombra o Brasil a cada trinta anos, a miscelânea de sentimentos entre aquelas pessoas surge sem raiz, sem lógica e é tomado como verdade por um grupo que precisa do medo de algo para se perpetuar politicamente. Nessas circunstâncias, o medo é mostrado como um sentimento que pode unir as pessoas, mas que também pode afastá-las de seus semelhantes, cabendo ao emissor a dosagem.

A cena final, que se torna uma alegoria ao grito de Medusa, exprime a vontade de ser livre, mas como ela é impedida pelo medo induzido por uma série de pessoas que sequer seguem os preceitos pregados, como o próprio pastor, que critica “os homens que querem ser maiores que Cristo”, quando ele mesmo quer se tornar algo cada vez maior e poderoso. Isto se encaixa com afirmação da escritora estadunidense Susan B. Anthony: “Eu desconfio das pessoas que dizem saber qual é a vontade de Deus, pois geralmente, isso coincide com os próprios desejos dessas pessoas”. O desejo de justiça e poder proferido pelos líderes e replicado pelos fiéis não é a vontade inerente de Deus, mas sim a perpetuação de uma ambição carnal. Todos são movidos por estes desejos e ambições, mas que em uns é mantido pela suposta vontade divina e em outros é ceifado, afinal o livre pensamento é a única forma de romper com as amarras da prisão espiritual e mental, convindo aos líderes a manutenção da bestialidade.

Apesar da forte mensagem de liberdade, nem tudo são flores. Medusa não se mantém consistente e, ao longo de cansativas duas horas e dez minutos — não pela duração em si, mas pelo conteúdo —, a narrativa se arrasta entre momentos dignos de aplausos e cenas, ainda que poucas, onde não é notável uma grande coerência ou aprofundamento.  Um dos momentos que mais se encaixa nesse julgamento é uma cena ambientada em um dos corredores da casa de repouso onde os funcionários dançam com a protagonista. O que inicialmente aparentava ser mais uma maneira de simbolizar a libertação das personagens de suas amarras, passa a ser uma execução falha que extrapola a linha tênue entre conceito e marmelada. Afinal, essa cena não se encaixa bem com o restante do material, principalmente pelo uso dos funcionários do sanatório, que são bem pouco explorados na narrativa, o que faz a cena parecer um mero aproveitamento de elenco sob um véu de conceito estético. Além disso, o uso de uma série de outras personagens, que é mínimo, como Clarissa, que é inserida logo no começo do filme para contextualizar o espectador, poderiam ter sido mais bem trabalhados, dado o tempo de narrativa. Estas personas acabam se tornando apenas um mote para o avanço da protagonista, desperdiçando uma oportunidade de detalhar o convívio entre aqueles membros.

Em resumo, a partir de uma premissa muito interessante que exprime exatamente o que precisa ser debatido e mostrado na atualidade, Medusa acaba se tornando, sob a ótica da forma em que foi desenvolvido, um filme com a duração maior do que a necessária, ou ainda, com cenas que poderiam ter sido mais dinâmicas, se tornando uma trama gelatinosa — de bom sabor, mas com textura inconsistente —, variando de momentos marcantes a cenas que mereciam um carinho maior. No entanto, o filme se destaca pelo conceito visual interessante, que passa exatamente o sentimento que se espera e não peca no ponto em que se propõe a criticar e refletir desde o princípio: como o extremismo que carcome o cerne da nação é um perigo a ser notado e cuidado.