A Família Lero-Lero (1953)

Taveira é um pacato funcionário publico. Em suas mãos passa muito dinheiro. Em casa, a função de pagador continua, para atender os desejos de fama dos seus três filhos, que querem ser, respectivamente, cantor de rádio, estrela de cinema e jogador de futebol, no que são estimulados pela mãe. Após o fracasso dos talentos da família, Taveira é responsabilizado pela esposa, D. Isolina, por não estimular os filhos. Para se livrar da família,dá um golpe e foge para o Guarujá onde, segundo dizem, leva uma grande vida. D. Isolina, enfurecida, persegue o marido fugitivo, juntamente com os filhos e um velho amigo da família. Sem saber, são seguidos por um investigador.

Críticos:

Lívia Fiuza

O “jeitinho” da Vera Cruz

 

          Para compreender o contexto de produção desse filme da Vera Cruz, é necessário promover uma análise do filme “Carnaval Atlântida” (1952) da Atlântida, uma vez que, ambas são produtoras de um cinema de estúdio, e tinham a intenção de tornar o cinema brasileiro, uma produção industrial. Esse sonho comum possui abordagens claramente distintas, de modo que, a carioca expunha nos filmes a cultura brasileira, e demonstrava de todas as maneiras a carnavalização dos temas universais. Eles tinham a intenção de tornar elementos propriamente da cultura do Brasil, visíveis ao público estrangeiro, e isso era, segundo Alberto Cavalcanti (cineasta convidado para realizar os filmes da produtora paulista), o que tornava esses filmes inacessíveis ao exterior. Abrasileirar discussões universais impedia o êxito internacional dos filmes. Portanto, a Vera Cruz, pretende com seus filmes - “A Família Lero-Lero” não foge do padrão – se equiparar com o cinema estrangeiro, ao produzir um cinema ecumênico, sendo acessível para todas as culturas. A partir disso, compreende-se a tentativa de internacionalizar esse filme, a se começar pela direção italiana. Ainda, no enredo de Laurita, os profissionais de audiovisual presentes na audição da filha de Aquiles, possuíam sotaques estrangeiros, e, não há elementos culturais representados que caracterizaria o filme como feito no Brasil, também não há uma recusa explícita da cultura estrangeira vista em outros filmes em anos anteriores produzidos pela Atlântida, nem mesmo as personagens apresentam características que as definiriam como pertencentes à cultura vislumbrada no território nacional. Pode-se dizer que o único elemento que traduziria aquela família como do Brasil, é o “jeitinho brasileiro” exprimido pelos integrantes do núcleo retratado. Essa característica é vista a partir do momento em que os filhos são forçados a trabalhar, já que, não podiam mais depender de Aquiles, então, eles fazem menções a práticas cordiais, como pedir um carro emprestado a quem eles têm mais afinidade, ou, ainda, na atitude do pai ao engenhar um plano tão complexo a fim de conquistar um carro e dinheiro. 


          Em muitas vezes, o filme tenta demonstrar uma burocracia exagerada, um extremo de normas e procedimentos a serem seguidos. Como na cena em que dois homens aparecerem querendo resolver um problema urgente, e Aquiles os direciona para vários lugares que eles deveriam ir com o intuito de cumprir os procedimentos necessários, o que provoca um humor reflexivo sobre a necessidade de todos esses trâmites. Ainda, a cena em que o trabalhador da família cumprimenta todos os colegas de trabalho com um “Boa tarde” individual, demonstra uma norma social de educação e boa convivência que é colocada como caricata, o que possibilita traçar um paralelo com um filme contemporâneo de sucesso, Jojo Rabbit (2019) de Taika Waititi, que também ridiculariza o exagero de convenções, nesse contexto, fascistas.


          Um elemento primordial para a construção desse filme é o leitmotiv (uma frase ou elemento recorrente no filme) “deixa de lero-lero”, que além de ser o substantivo atribuído à família, é uma expressão que significa para “parar com conversa fiada”. Portanto, é um termo agregado à família, porque é capaz de representar uma característica deles: a de reclamar a todo tempo sobre qualquer situação, dessa forma, “deixar de lero-lero”, transmitiria a insatisfação dos próprios membros da família com as constantes reclamações uns dos outros. Sobre essas questões, eles acabam demonstrando uma certa hipocrisia em seu discurso, à exemplo do Aquiles, que critica a reclamação dos outros familiares, sendo que, no próprio trabalho, ele demonstra ter registrado 278 cartas de reinvindicação sobre algo que o incomodava. Ainda sobre as inconsistências na fala e no comportamento demonstrado do protagonista, há uma referência com o Deus Apolo proposta por ele a fim de engrandece-lo em questões de definição corporal,  o que é definitivamente inválido, ao não constatar nenhuma semelhança com o físico de um Deus, porém, o mais contraditório sobre essa comparação, é o fato de que esse filho de Zeus, é o Deus da música e das artes, o que demonstra uma afinidade totalmente oposta à da personagem principal, já que esse, repudia todas as iniciativas dos filhos de se expressarem artisticamente. O próprio nome Aquiles, está presente na mitologia grega como um herói semideus, forte e corajoso, e sobre essa última atribuição, o protagonista do filme só a adquiriu depois que foi para a cadeia, tendo uma jornada distinta do herói com final trágico. Vê-se outras demonstrações de inconsistências comportamentais pelo resto da família, que mudam a forma de se portar (positivamente) a partir da menção do dinheiro ou da possibilidade de não terem que trabalhar. Mas, principalmente, demonstram através disso, a tendência comum e universal de “esconder” comportamentos “negativos” das visitas, com a intenção de causar uma boa impressão.


          A quebra da quarta parede no cinema, em alguns casos ocorre com o intuito de relembrar o público que aquilo se trata de uma obra de ficção, do mesmo modo que ocorre no filme de Alberto. Aquiles “relembra” o espectador, que aquilo se trata de uma obra imaginativa, que o plano arquitetado por ele não funcionaria na vida real. Na tentativa de conscientizar o público a fim de não repetirem o que a personagem realizou, faz-se necessário traçar um paralelo com o filme de José Medina de 1929, “Fragmentos da vida”, ao desmotivar essa prática, para que de certo modo preserve a soberania do Estado. Sobretudo por isso, que as duas obras se encontram, ao passo que, ambas sugerem a prisão (que é controlada pelo Estado) como fonte de abrigo e segurança, que fornece comida, e “não cobra taxa nenhuma”, segundo Aquiles.


          Em vias gerais, é um filme com um ritmo intenso, nas falas e execução do enredo, os fatos que são retratados imprimem um compasso, em certos momentos, exagerado, que confere um humor rápido e certeiro à narrativa. Utiliza-se de vários elementos da linguagem audiovisual, tornando-o rico na sua montagem e execução, com um vasto uso de planos sequência. Como um musical, a escolha das letras é precisa, tendo os momentos de melodia do grupo de crianças satisfatórios com o que ocorre na história, já nas ocasiões protagonizadas pelo filho aspirante a cantor, a escolha do repertório não condiz com a narrativa, por não haver necessidade de tal. Então, “A Família Leco-Leco” é um filme muito bem-humorado, e cumpre com as propostas da Vera Cruz, de trazer ao cinema brasileiro, um caráter mais universal, e abandona elementos vistos em anos anteriores, que tornariam os temas explicitamente brasileiros.