Uma quadrilha de criminosos hospeda-se no Copacabana Palace a espera do chefe desconhecido, que será identificado por sua cigarreira incomum. Acidentalmente o objeto acaba parando nas mãos de Ricardo, diretor artístico do hotel, o que gera uma série de confusões envolvendo sua namorada, Marina, Serafim, o atrapalhado assistente que sonha em ser ator, e os bandidos.
A chanchada
É imprescindível para realizar a compreensão do filme de Watson Macedo, possuir um entendimento sobre o manifesto da Atlântida, já que eles expõem neste o idealismo sobre os sonhos para o futuro da produtora: “Seremos uma grande empresa brasileira, começando por valorizar nossos temas, no que possuímos de mais belo, nos ambientes pictóricos e regionalistas, nos aspectos sociais do homem brasileiro, na sua história, na sua arte, suas tradições e seus costumes e na psicologia desse homem.”. E isso foi feito na construção de “Carnaval no Fogo”. Com a antológica cena de abertura, Oscarito utiliza de sua herança circense para trazer uma sensibilidade e para transmitir uma legitimação nos movimentos teatrais que executava. No decorrer da cena, pode-se notar uma inaptidão de Serafim com a expressão artística interpretada, mas a emoção transmitida pela performance do ator proporciona uma credibilidade, alicerçada na montagem inteligente da cena, que com um contra-plongée garante à audiência que ela estava diante de uma apresentação de uma orquestra sinfônica, a performance de uma forma de arte clássica, o que gera uma expectativa pelo que prosseguirá no decorrer do filme. Essa expressão artística é consumada como uma arte de elite, e distante de grande parte da população brasileira, sendo assim, ao Serafim se trocar e se apresentar como um faxineiro sonhador, o filme promove uma relação com o homem brasileiro, a obra insiste que não se deixa influenciar por aspectos e tendências da indústria cinematográfica, - que valoriza a cultura tida como erudita – e sim, mostra a realidade dos brasileiros e a produtora se conecta com o povo através do espírito sonhador.
As personagens de Grande Otelo e Oscarito exercem funções semelhantes, contudo, demonstram receber influências distintas. O primeiro compreende o inglês e tem contato e domínio de referências estrangeiras, que o segundo não possui. Serafim, só esboça conhecer “Romeu e Julieta”, pois foi uma maneira de Watson Macedo estabelecer uma interação de suas obras de enorme sucesso, tornando ainda mais atraente ao público, por serem capazes de assimilar a alusão proposta. Por conseguinte, pode-se encarar Serafim como uma tentativa de desvencilhar o Brasil da cultura dominante, atentando ao fato de ele não ter conhecimento da cultura estrangeira, provando que a cultura nacional é autossuficiente.
A história apresenta elementos que aludem a construções tradicionais do cinema norte-americano. A perseguição entre “vilões” e “heróis” e a tentativa desse Primeiro Cinema (norte-americano) de enquadrar tudo em “bom” ou “mau”, é dominado no filme a partir da carnavalização desses temas. Começa-se pelo uso do inglês “abrasileirado” e pela recusa da maioria dos retratos em aprender a língua de fora. E sobre a estética de dualidade moral, o filme rejeita o tratamento tradicional para esse assunto, que seria uma junção de cenas de ação com drama, e utiliza da comédia para promover o riso, que é a essência do carnaval. Situações que poderiam demonstrar perigo ou ansiedade, são retratadas de maneira cômica, retirando uma seriedade da cena, proporcionando leveza e diversão. É característico das chanchadas relativizar a ordem social de maneira crítica por meio do riso, do carnaval, promovendo o divertimento daquilo que no cinema tradicional seria tratado com austeridade.
Mesmo naquilo que já é intimamente brasileiro (a figura de Carmem Miranda, por exemplo) ocorre uma tentativa de tornar ainda mais reconhecível, adicionando instrumentos e expressões na dança que são capazes de torná-la mais alegra, com mais feição de carnaval, com mais “cara” de Brasil.
A partir dos comentários da Atlântida sobre o cinema, é possível analisar que eles consideram a sétima arte como uma expressão resultante de todas as outras formas de arte, dessa maneira, a utilização do musical se faz correta para fazer justiça ao que corresponderia à essência do cinema. Eles, ainda, mencionam a fundamentalidade dessa arte na educação coletiva, portanto, ela tem a intenção de apresentar o Brasil ao brasileiro, e para se fazer isso, devem contar com tecnologia de alto nível, que provém do exterior, de certa forma, possuiria uma influência estrangeira, então, propõem se desvencilhar do cinema tradicional a partir da execução do filme.
Com exceção da cena de abertura, em que o contra-plongée é utilizado para transmitir um tom de superioridade e empoderamento, não há outros planos subjetivos durante a construção do filme. É usado planos de deslocamento para transitar entre cenas ocasionalmente, e geralmente, com câmera fixa e ângulo normal. Os planos possuem técnica de execução, contudo, sua montagem não demonstra possuir um caráter simbólico. Diante da questão da exportação da tecnologia cinematográfica, os elementos de pós-produção sonoros são muito bem implementados, possuem uma noção sobre a utilização do som in e off que leva em consideração as limitações da captação sonora, portanto, conciliam e reconhecem a existência do som ambiente, e lidam com eles um de cada vez. Fazem o uso, também, de onomatopeias, assim como é visto em quadrinhos. Neste caso, quando ocorre algo relacionado à concretização de algo romântico, é possível escutar o canto dos pássaros.
A popularidade do filme se deu pelo auge das chanchadas, já que, ocorre a união em seus temas o romance, tramas policiais e/ou comédia. Esses temas geravam uma identificação social, e, a obra de Watson Macedo foi capaz de ilustrá-los com uma delicadeza e naturalidade, promovendo entretenimento ao público. Através da narrativa popular dos funcionários do Copacabana Palace, percebia uma aproximação dos espectadores com a situação de classe social, da linguagem dominada e a maneira de se expressar diante das situações. O filme carnavalesco foi muito feliz ao utilizar personagens que não são comumente retratadas em destaque, foi capaz de demonstrar um discurso de liberdade e empoderamento feminino; a incorporação de personagens masculinas que não se portavam de acordo com os conceitos equivocados da expressão da masculinidade – a figura do auxiliar de Ricardo, era para época um grande avanço na promoção da inclusão, e essa personagem se tornará caricata e constante em filmes de comédia no Brasil, o que atualmente carrega uma carga de preconceito, contudo, em 1949 demonstrava a versatilidade e modernidade das chanchadas - ; e, a utilização de um personagem negro em uma situação, ainda de submissão na questão de posições sociais, porém, com um conhecimento sociocultural invejável, pautas que até recentemente tinham dificuldade de abarcar as narrativas cinematográficas. Ainda sobre representação, um recurso utilizado para atrair espectadores, foi a associação do Grande Otelo ao filme, já que, possuía enorme prestígio e o seu nome precedia a qualidade da obra, levando muito entusiastas de seu trabalho aos cinemas por essa narrativa de carnaval.
Assim como desejavam os “sonhadores teimosos” através do manifesto, “Carnaval no Fogo” é uma narrativa muito bem construída, capaz de encontrar-se em todos os brasileiros, com uma história bem elaborada e que consegue se expressar como uma arte brasileira em meio a tantas influências estrangeiras inegáveis. É uma luta contra dominação dos ocupantes, e que é possível conceder essa vitória ao cinema brasileiro, em vista que, seu humor atraente e irresistível consegue penetrar os corações do “povo disperso” mesmo décadas mais tarde.