O Bicho de Sete Cabeças (2001)

Em Bicho de Sete Cabeças, Seu Wilson e seu filho Neto possuem um relacionamento difícil, com um vazio entre eles aumentando cada vez mais. Seu Wilson despreza o mundo de Neto e este não suporta a presença do pai. A situação entre os dois atinge seu limite e Neto é enviado para um manicômio, onde terá que suportar as agruras de um sistema que lentamente devora suas presas.

Críticos:

Pollyana Rodrigues

A atmosfera caótica e visceral de O Bicho de Sete Cabeças


O Bicho de Sete Cabeças é o primeiro filme de longa-metragem dirigido por Laís Bodanzky, e lançado em 2001. Retrata a história de Neto, um jovem skatista vivendo as intensidades de uma juventude rebelde e instável, interpretado por Rodrigo Santoro. As constantes discussões com seu pai, Wilson (interpretado por Othon Bastos) refletem os abismos geracionais entre ambos, maximizando a insustentabilidade de um convívio harmonioso e a falta de diálogo e compreensão. Um dia, o adolescente é pego com um cigarro de maconha e enviado pela família a um manicômio como tentativa de cura e reabilitação.


O longa foi baseado na história real de Austregésilo Carrano Bueno, contada no livro “O Canto dos Malditos” e escrita por ele mesmo. A história se passa nos anos 70 e conta sobre como o jovem (com apenas 17 anos na época) acaba sendo internado em um hospital psiquiátrico pelo próprio pai após encontrar uma trouxinha de maconha em seus pertences. 


Na instituição, o jovem sofreu todo tipo de experimento e maus tratos, desde eletrochoque à medicamentos pesados sob a argumentação de estarem realizando um tratamento intenso para pessoas viciadas em drogas. Na narrativa do filme, Bodansky decide retratar a história sob a perspectiva dos anos 90/2000, pois a falta de abordagem sobre a precarização e negligência estatal manicomial ainda persistia mesmo depois de tanto tempo. Bicho de Sete Cabeças foi lançado no mesmo ano em que foi aprovada a lei da reforma psiquiátrica, e assim como o livro, a própria obra acabou sendo considerada ferramenta essencial na luta antimanicomial e na busca de melhores diálogos sobre saúde mental e a desconstrução da estigmatização em torno da juventude desamparada ou doente emocionalmente. 


Antes de tudo, o título do filme que remete-se a Hidra de Lerna, já nos antecipa a atmosfera caótica e visceral da obra. Na mitologia grega, Hidra de Lerna era um monstro que habitava em um pântano e que tinha corpo de dragão e várias cabeças de serpente. Além disso, a Hidra de Lerna possuía um hálito tão fétido que destruía a colheita, os rebanhos e qualquer um que se aproximava. Nesse sentido, a missão de Héracles era de liquidar a Hidra, porém todas as vezes em que cortava uma de suas cabeças, nasciam duas no lugar. 


Simbolicamente a Hidra de Lerna representa os vícios que renascem em suas cabeças e seu sangue venenoso que contamina a água do pântano, representa os vícios que corrompem aqueles que entram em contato. Uma denominação mais resumida do que a mitologia fala, é “(...) aquilo que se revela por um caráter de destruição, opressão ou perigo incessantemente renovado.”


A postura conservadora de Wilson refletiu diretamente em sua relação com o filho. A falta de uma conversa ou de uma compreensão mais apaziguadora sobre a fase cheia de dúvidas e angústias do caçula culminou em tentativas fracassadas de tentar resolver as inconsequências do jovem, através de uma internação forçada. A cada ‘cabeça’ cortada entre uma internação forçada e outra, dava espaço para novas “cabeças”, nesse caso as consequências e sequelas causadas pelo abandono dos pais, as torturas dos enfermeiros e o descaso do Estado. E Neto aqui, não representa apenas os adolescentes incompreendidos por seus pais, mas em certa medida, todas as pessoas da sociedade consideradas loucas, desequilibradas, inadequadas, frágeis e dependentes.


Interessante mencionar que a origem de O Bicho de Sete Cabeças surge de uma pesquisa de Bodansky durante a produção de um documentário sobre saúde mental, e que durante uma de suas leituras e após usar de referência a obra de Carrano, percebe-se a necessidade de contar aquela história sob outra perspectiva, a do audiovisual. Tendo uma experiência com documentários e produções voltadas à educação, vemos aqui uma ficção que permeia entre o documental e o didático. Um filme-denúncia que retrata de forma real o despreparo e desprezo das instituições psiquiátricas, bem como do governo. 


Como sua prioridade era retratar a realidade sem devaneios, Bodansky opta pela estética da câmera na mão, da linguagem crua beirando o aspecto documental sem perder a originalidade através do roteiro, som e fotografia. Essa linguagem nos faz “vestir a pele” do personagem e a dinâmica da câmera ao seguir os atores, proporcionou uma liberdade criativa sem amarras e completa autonomia para os personagens expressarem tudo o que o corpo e o olhar pudessem expressar sem demonstrar que tudo aquilo era pré-programado, resultando em uma atuação documental. A câmera ao passear pelas paredes frias e sujas nos leva a uma atmosfera crua e densa que flerta com o verossímil e quase nos faz acreditar que todos os pacientes que perambulam pelo pátio da instituição eram de fatos pacientes reais. A agressividade da fotografia se aproxima da realidade de um ambiente violento e vil, e a sensação que causa é que a cada esquina será possível encontrar um lugar assim.

 

O som do filme é fundamental na construção do clima de desavenças e de perda de identidade. Um exemplo para se prestar atenção à edição do som é a cena (no início) em que assistimos à mãe de Neto ouvindo a discussão entre pai e filho. A confusão sonora reflete a confusão de sentimentos familiares e o som percorre a casa toda até chegar ao cenário principal, onde a briga está de fato acontecendo. Outro aspecto que torna o filme primoroso, é a forma em que a narrativa e os sentimentos confusos, distorcidos e retorcidos pelas angústias de Neto, bem como sua melancólica loucura, são contadas através da trilha sonora de André Abujamra e as canções de Arnaldo Antunes, transmitindo a confusão mental do personagem.


O Bicho de Sete Cabeças foi um “filme de turma”, nas palavras do produtor Caio Gullane. Uma produção feita em coletivo, com pessoas que se entregaram de corpo e alma desde o príncipio. À começar pelo elenco escolhido a dedo, que de exemplo temos Rodrigo Santoro e sua estreia como protagonista de um longa-metragem que o catapultou para os cinemas internacionais à partir daqui.


Também é importante ressaltar a intensa preparação de elenco realizada por Sérgio Penna, pois os coadjuvantes e figurantes encarnam seus papeis com perfeição, criando uma “galeria de loucos” que convence sem apelar para o estereótipo que estamos acostumados a ver. Sem esquecer dos veteranos, Othon Bastos e Cássia Kiss mostram a competência de sempre, mas volto a enfatizar que o verdadeiro espetáculo veio através das atuações dos demais internos dos manicômios, como Gero Camilo, Caco Ciocler e Luis Miranda, que na época eram atores novos e inéditos, e que ainda não haviam sido descobertos. Sendo assim mais um acerto da produção.