Baseado na peça homônima escrita por Nelson Rodrigues. Ao presenciar um atropelamento, Arandir, um bancário recém-casado, tenta socorrer a vítima, mas o homem, quase morto, só tem tempo de realizar um último pedido: um beijo. Arandir beija o homem, mas seu ato é flagrado por seu sogro Aprígio e fotografado por Amado Ribeiro, um repórter policial sensacionalista.
O beijo no asfalto
O beijo no asfalto (1981) é um filme dirigido por Bruno Barreto e baseado numa peça teatral de mesmo nome escrita por Nelson Rodrigues. Conta a história de Arandir, interpretado por Ney Latorraca, um banqueiro que beija um homem morto atropelado por um ônibus na rua. O ato do beijo é transformado num escândalo pela imprensa sensacionalista e antiética, que faz com o que a vida de Arandir seja completamente afetada, sofrendo ataques homofóbicos de familiares, amigos e até mesmo da polícia corrupta, que começa a investigá-lo pela acusação de homicídio.
O filme se inicia logo após o atropelamento acontecer, sem mostrar a cena do beijo ou a vida de Arandir ou do atropelado antes do acontecimento, sendo assim é impossível para o espectador saber o que de fato aconteceu, tendo que ser guiado apenas pelos depoimentos dos próprios personagens do longa. No dia do acontecimento, Arandir vive sua vida como qualquer outro dia, como se nada tivesse acontecido, porém o rumor do que ele fez já se espalha entre seus conhecidos. Ele alega que apenas beijou o homem por piedade, pois esse foi o seu último pedido em vida e não poderia negá-lo à alguém a beira da morte. A sociedade, porém, não acredita em sua alegação e cria teorias para o ato que cometeu. A principal teoria é de que ele teria cometido “homossexualismo”, sendo assim, ele e o homem seriam na verdade amantes e aquele beijo na verdade não era o primeiro. É criada toda uma história fantasiosa de que eles se conheciam há tempos, que o homem havia visitado Arandir em seu trabalho, que tinham tomado banho juntos, tudo isso sem provas concretas. O foco principal não era e nunca foi a morte que havia acontecido, e sim o beijo que um homem deu em outro homem, fazendo com que Arandir tenha que fugir como um criminoso.
Selminha, a esposa de Arandir, interpretada pela Christiane Torloni, não consegue lidar com a mudança brusca que sua vida teve, sendo constamente atacada e alvo de trotes por conta de seu marido. Diziam que ela havia sido traída e que o casamento iria acabar, seu próprio pai não conseguia nem ao menos dizer o nome de Arandir para filha, chamando-o apenas de “seu marido” ou “meu genro”, apesar disso ser algo que era recorrente antes mesmo do acontecimento, como foi apontado pela própria Selminha, que alega que seu pai nunca gostou de seu genro. Ela não aguenta mais viver uma vida de humilhações, agressões e brincadeiras, chegando até a desconfiar da sexualidade de seu próprio marido. Antes ela achava o beijo num homem prestes a morrer um ato bonito, mas depois de toda a especularização isso se torna algo vergonhoso e imoral, porque, para ela, o problema não era necessariamente Arandir ter uma amante, mas sim o fato de que essa amante na verdade era um homem. Totalmente paranoica, confusa e vulnerável com os diversos depoimentos de seu marido e também da polícia e da imprensa, Selminha não sabe mais em quem confiar.
O jornalista Amado Pinheiro, interpretado por Daniel Filho, não está interessado em investigar o que realmente aconteceu no atropelamento, se foi acidente, homicídio ou qualquer outra origem, apenas de usar o beijo como o foco central de sua matéria, como algo escandaloso e promíscuo, quase como um verdadeiro crime. Pinherio, na verdade, apenas quer limpar a imagem de seu amigo, o delegado Cunha, interpretado por Oswaldo Loureiro, que teve acusações de agressão expostas pela imprensa e acha que esse caso do atropelamento vai limpar a sua imagem de uma vez por todas. O que ambos então fazem é organizar uma espécie de ‘caça às bruxas’ com Arandir, torturando-o, abusando sexualmente de sua esposa, obrigando a viúva do homem atropelado a dar um depoimento informando que ambos já se conheciam e fazendo com que toda a vizinhança fosse atrás de Arandir para humilhá-lo. Porém, como beijar outro homem não é crime, apesar de considerarem pecaminoso, o delegado Cunha arranja a desculpa de que Arandir matou o homem por ciúmes, empurrando-o na frente do ônibus, como se tivesse planejado tudo isso.
Foragido, a única pessoa que confia em Arandir e não se refere a ele como “viado” é Dália, sua cunhada, interpretada por Lídia Brondi, cuja qual é apaixonada por ele e não acredita que ele realmente gosta de homens. Dália então se aproveita da situação para tentar conquistar seu cunhado através da sedução, mas é flagrada pelo seu próprio pai. Ela acredita que todo esse desgosto que Aprígio, interpretado por Tarcisio Meira, sente por Arandir é porque ele era, na verdade, apaixonado pela Selminha, sua própria filha, tendo assim ciúmes dela desde o momento em que a moça e Arandir começaram a namorar. Sua teoria, porém, é contrariada quando Aprígio revela ser apaixonado por Arandir, admitindo que sentiu ciúmes do homem que ele beijou no asfalto enquanto morria, dizendo que, se ele não poderia beijá-lo, então não deveria estar vivo.
Por fim, mesmo tendo um ritmo frenético e acelerado, sem muito contexto ou explicações, a temática de preconceito, mais espeficicamente da homofobia, é retrada durante todo o longa, mostrando de maneira realista como alguém pode sofrer com isso e como pode surgir de entidades que deveriam na verdade proteger a população e trabalhar na aplicação correta da justiça e da verdade, como a polícia e a imprensa, que no filme apenas alimentam o preconceito já existente na sociedade a fim de benefício próprio. O longa é atual ao ponto de transmitir situações e diálogos que poderiam facilmente existir nos dias atuais, mesmo sendo um filme de 1981 e baseado numa peça dos anos 60. Usando a cena final com Aprígio abaixado beijando Arandir como referência à primeira cena, o filme retrata como o preconceito é um ciclo vicioso, e como nada disso irá mudar até que a própria sociedade mude.