Mariana decide deixar o apartamento onde viveu por mais de uma década com o agora ex-marido Henrique e com a filha adolescente Natália. Natália contraria a mãe e decide permanecer em casa com o pai. Juntos, pai e filha aprendem a lidar melhor um com o outro.
Representação do cuiabano no cinema
O curta apresenta já de início duas relações familiares contrastantes entre pais e filha. Existe uma dificuldade comunicativa por parte da mãe com a jovem Natália, enquanto com o pai, ela mostra ter uma afinidade maior. A partir da imersão na realidade desse núcleo familiar, percebe-se um conflito entre as figuras parentais pela existência de uma outra parte nessa relação pré-estabelecida, é possível deduzir, então, o fim da união entre eles e a constituição de outro relacionamento por parte da figura materna.
Enquanto busca-se compreender como cada membro lida com a transformação dessa
estrutura social, é notório as referências à cidade de Cuiabá, apresentando aspectos de familiaridade regional, desde a cena inicial com o ilustre ônibus amarelinho, até a menção de um comércio de rua - “Tobias” -, provavelmente, conhecido pelo bairro. Elementos narrativos que aproximam o espectador cuiabano da história contada, não somente pela realidade familiar, mas ainda, por se ver atravessando aqueles mesmos bairros, e encontrando conforto ao perceber que reconhece as construções retratadas por Juliana e Diego.
O laço entre pai e filha é exposto como uma relação tão afetuosa fundada na cena em que o provedor pede para dormir na mesma cama que a adolescente. Para indivíduos inseridos em outras culturas, isso pode ser chocante, por ultrapassar os limites entre uma relação considerada “correta” entre esses níveis familiares. Todavia, por meio do conceito de “Homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, verifica-se que o brasileiro prioriza laços emotivos, agindo com o coração, portanto, uma atitude tachada como errada em outros países, torna-se comum entre pais e filhos no Brasil.
Ainda sobre a dinâmica entre Henrique e Natália, esta é visualizada possuindo uma interação aberta e confortável, em oposição à relutância que a filha tem em aceitar as mudanças por parte da mãe. Esse comportamento pode ser explicado pelo sociólogo Émile Durkheim, que escreve sobre as três características dos fatos sociais: coercitivos, anteriores e gerais, fazendo com que os dois primeiros sejam verdade para Natália. Coercitivos no sentido de que exercem um poder ordenador sobre grupos sociais, e anteriores pois o indivíduo é inserido nele ao nascer. Ambos, ao serem colocados sob uma perspectiva familiar, se portam como aspectos dos quais a jovem era naturalizada. A estrutura “família” foi a mesma para Natália por grandes fases de sua vida, ela permaneceu inalterada durante vários processos de modelação do ser social, por isso, a transformação dessa realidade foi conturbada e resistente por parte da filha, somado à sensação de ter sido enganada- acentuado por estar na adolescência-, por não saber o que acontecia entre seus pais.
Em um momento de confidências entre pai e filha, é feito uma piada de como os dois e a união da Mariana e, sua parceira, Bia, retrata a “família tradicional brasileira”, e mesmo em tom irônico, essa frase se mostra verdade, por mais que haja a tentativa do conservadorismo no Brasil de apagar essas faces familiares, não de acordo com os “valores cristãos”. Antecipando, de certa forma, debates recentes em vista da ameaça aos direitos sociais de grupos que, segundo o discurso vigente, não se encaixam na “família tradicional” inventada por eles.
Em um dado momento, Henrique declama o poema de Fabrício Corsaletti, “O que eu quero de você”, e este retrata muito bem a solidão que o protagonista parece vivenciar, ao mesmo tempo que ele não busca o que perdeu, se conformando com a separação e a nova vida da antiga parceira. Em ambas as expressões de arte, existe a aceitação da dor, e se encontram também no “depois que o amor acabar/ do outro lado da dor”.
Aquele disco da Gal força um encontro entre as personagens conflitantes através do acidente da jovem. Sendo o nome da narrativa, o ponto de partida para uma tentativa de conciliação entre as partes, ou o que ao menos a direção nos leva a entender, assim como 2 e 2 são 5- mostrando que não será fácil, mas é possível seguir um caminho de união, através da maior aceitação por parte de Natália, e da experimentação de Henrique.
É um excelente curta, com uma ótima direção, explorando o plano sequência, planos médios e close-ups quando necessários de maneira harmoniosa e coesa. Ele se encerra da mesma forma que começou, com Henrique voltando menos sozinho para casa.