Ao rever o filme de Hitchcock, Pablo Borges Paz se vê motivado a escrever algumas impressões sobre a obra, destacando a recusa ao realismo, se tornando "maior que a vida".
Um corpo que cai (Vertigo, 1958) é um filme estadunidense de 1958 dirigido pelo cultuado diretor Alfred Hitchcock. Narra o romance de John “Scottie” Ferguson (James Stewart) e de Judy Barton (Kim Novak). O marido de Judy, Gavin, contrata seu colega, John, o qual recentemente descobriu sua acrofobia, para investigar os recentes comportamentos anormais de sua esposa e a partir dessa investigação eles se apaixonam.
Essa obra-prima cinematográfica, que após 60 anos continua sendo um longa-metragem obrigatório para os amantes e estudantes de cinema, mesmo após tantas décadas continua sendo objeto de discussão. A revista britânica Sight and Sound, que publica uma lista de top 10 melhores filmes de todos os tempos a cada década desde de 1952, com votos de críticos e cineastas ao redor do mundo, colocou em sua votação de 2012 Um corpo que cai como o melhor filme. Interrompendo o reinado de Cidadão Kane (Orson Welles,1941), que liderava a lista há quatro décadas. Tais votações são uma discussão subjetiva e que retem grandes ressalvas, mas não deixa de mostrar a importância deste longa para os fãs de cinema e realizadores.
O que me motivou a escrever sobre este filme foi inicialmente uma vontade de assistir novamente a este clássico e me aprofundar na filmografia de Hitchcock. Durante um tempo considerei Festim diabólico (1948) meu filme favorito do diretor, apesar de ser hipnotizado pela tentativa de plano-sequência e pela história em si, se baseando em um caso real e utilizando a dramatização das ações dos personagens e os diálogos para a criação de tensão. São aspectos que chamam a atenção neste longa. Além da presença de um dos meus atores favoritos, James Stewart (e aquele monologo no final? Simplesmente incrível). Continuando, como obrigatoriedade na filmografia de Hitchcock, fui assistir novamente a Um corpo que cai e mudei completamente de opinião. Obra-prima é o único adjetivo que consigo encontrar para descrever este filme.
À primeira vista, o fator chamativo deste filme é o uso de cores para dialogar com a diegese. O uso do verde pela atriz Kim Novak e o uso do amarelo pela personagem de Midge são lindas e dialogam com as mudanças das protagonistas que se transforma a cada cena para uma cor e mudança de emoções. Nas duas cenas mais memoráveis do filme, aquela em que Scottie se apaixona à primeira vista por Judy no restaurante, observamos o longo vestido verde da personagem e a presença gritante do vermelho no cenário. Em outra cena, já no terceiro ato do filme, o personagem se apaixona novamente por uma mulher que ele acredita ser apenas parecida com sua falecida amada. Após ela ajeitar seu cabelo de acordo com o pedido de John, nossa tela é preenchida por uma explosão de verde, demonstrando finalmente o êxtase do protagonista em reencontrar a amada. Este aspecto do filme demonstra um excepcional trabalho da direção de arte que, em conjunto com a trilha sonora de Bernard Herrmann, faz com que o filme tenha essa sensação de “maior que a vida”. Ou seja, este filme é extremamente cinematográfico. Ele não tenta ser “realístico”, como por exemplo os filmes de Christopher Nolan - para a exemplificação perfeita, a trilogia do Batman se envolve inteiramente neste ideal ao trazer um personagem de histórias em quadrinhos para o “mundo real”. Mas tal personagem e seu storyworld não é realístico. Pelo contrário, é uma ficção, e por este motivo são tão bacanas de se ler. Filmes que tentam de algum modo retratar a realidade como ela é, falham pelo próprio conceito. Como é possível refletir a realidade em filme? Por que fazer isso? Filmes são alegorias para a realidade, um dos grandes aspectos do cinema é que ele NÃO é a realidade, mas sim uma janela para reflexões dos pensamentos, medos, ações humanas. Hitchcock consegue capturar este princípio de maneira magnífica através de sua mise-en-scène.
A química entre Novak e Stewart é inegável, além dos personagens serem escritos de modo espetacular. Em Casablanca (Michael Curtiz, 1942) há um triângulo amoroso atemporal, peculiar, na qual o espectador duvida das reais intenções de todos os personagens, ou seja, um sub-texto carregado de interpretações e significados. Superficialmente, o romance entre o casal pode parecer brega e clichê, como mais um melodrama, uma história de amor incondicional e tragédia. A trilha sonora contribui bastante para que o texto possa ser visto deste modo.
De volta a Um corpo que cai, Stewart se apaixona pela personagem de Novak na icônica cena do restaurante. Mas essa paixão surge de modo estético. Ele se apaixona apenas pela sua aparência e nada mais que isso, um aspecto superficial, vazio e trivial. Mais para frente, após a morte de sua amada, ele começa a sair com a garota que se assemelha a Judy, fazendo de tudo para transformá-la no que ele deseja, não respeitando-a e nem se interessando em conhecê-la, apenas a desejando fisicamente a seus moldes para que ela se transforme em quem ele quer. Essas ações demonstram um relacionamento tóxico, como é feito de certo modo recentemente por Nasce uma estrela (Bradley Cooper,2018). Aqui vemos Novak apesar da consciência de sua situação, de que Stewart apenas se importa com sua aparência similar a ex-amante, ela continua a aceitar as imposições feitas pelo seu amado, apenas para que ela se sinta amada novamente, um vício pelo amor de Stewart. E esta palavra resume as ações de ambos, o vício, demonstrado através de suas ações incongruentes, não de um relacionamento saudável e construtivo, na qual os dois se amam e se ajudam. Mas sim um relacionamento destrutivo, no qual cada pequena fala e ação ajudam a danificar. Um amor egoísta, baseado em mentiras e falsidade. Na cena final, após descoberta a manipulação de sua nova amada e o plano de seu amigo, Stewart nos impacta com uma performance estrondante. Scottie deixa sua máscara cair por alguns minutos, mostrando sua raiva e violência. Por alguns momentos o espectador acredita que ele ira matá-la, ele perde seu medo por alturas e está disposto a fazer de tudo para exemplificar o quão traído ele se sentiu com as mentiras de Novak.
Desse modo, acredito que seja necessária a revisitação a esta obra-prima e não uma simples análise por meios superficiais de uma obra atemporal que mesmo após seis décadas ainda vive no imaginário dos amantes de cinema. Seja através da grande direção de Alfred Hitchcock; seja pela trilha sonora de Herrmann; seja pelas grandes performances dos protagonistas e o roteiro incrível, esse clássico demonstra o melhor que o cinema pode fazer e é um clássico absoluto do cinema hollywoodiano.